Percival Puggina
Muitas vezes me perguntam como desconstituir as falácias que a esquerda militante difunde em relação aos fatos e à história do país. Minha resposta é esta: não há como. O trabalho de manipulação é feito com insuperável determinação. A sempre acesa fogueira das mentiras queimou o sentido de certas palavras e forjou outras com persistência e eficácia que tornam inútil qualquer tentativa de lhes recuperar o significado. Há meia dúzia de anos, por exemplo, a palavra auto-anistia começou a ingressar no vocabulário político nacional para designar o disposto pela Lei de Anistia. Quantas vezes, leitor, você leu ou ouviu algum desmentido a esse respeito?
A simples palavra - auto-anistia - usada em substituição a Anistia, basta para sugerir que os congressistas de 1979 e de 1985 empenharam-se em aprovar preceitos que livrassem do acerto com a Justiça os agentes do regime que vigeu no país entre 1964 e 1985. A substituição de uma palavra pela outra tem o poder de substituir uma história por outra, bem diferente, ao gosto de quem consegue tirá-la da cartola e introduzi-la na cachola do distinto público. Feito isso, está pronto o serviço. A Anistia deixa de ser um instrumento jurídico de reconciliação nacional para se transformar em gesto canalha de quem, valendo-se do poder que detinha, legislou em causa própria para livrar a cara. Como são poucos os que conhecem história, a explicação do vocábulo se contenta com afirmar seu significado: a Anistia foi uma auto-anistia dos militares. Feito! Não há a menor necessidade de apresentar provas, ou indícios consistentes ou depoimentos testemunhais que convalidem aquilo que é afirmado.
Quem conhece a história, no entanto, sabe que não foi assim que as coisas andaram. A partir de 1966 surgiram os primeiros movimentos em favor da Anistia. Quem participava dessa mobilização? Entre outros, Associação Brasileira de Imprensa, Ordem dos Advogados do Brasil, sindicatos, entidades estudantis, advogados de presos políticos, familiares de brasileiros no exílio e o MDB, partido político oposicionista. Como se pode perceber, ninguém pró-anistia falava pelas Forças Armadas. Seria um completo disparate imaginar isso. A campanha era conduzida pelos que estavam do outro lado. Passaram-se muitos anos até que em 1979 fosse votada a Lei de Anistia em tumultuada sessão do Congresso Nacional. O projeto do governo Figueiredo não anistiava quem tivesse participado de "terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal". Para estes, as duras penas da lei. Mas havia uma emenda do deputado Djalma Marinho que anistiava a todos, ampla, geral e irrestritamente. Essa emenda, levada a votação, foi rejeitada por 206 votos a 201. Derrotada a emenda, o projeto do governo foi aprovado pelos votos das lideranças do governo e da oposição. Essa primeira Anistia, parcial, permitiu a volta ao Brasil da maior parte dos exilados, entre eles Leonel Brizola e Miguel Arraes.
A campanha pela Anistia ampla, geral e irrestrita continuou, então, por mais seis anos. Empenharam-se nela as mesmas instituições e grupos políticos de antes, insatisfeitos com o fato de que os praticantes de crimes ditos de sangue tivessem ficado fora da lei de 1979. Foi apenas através da Emenda Constitucional Nº 26, que convocou a Constituinte, em 27/11/1985, que o Congresso Nacional, eleito em plena legitimidade democrática, inseriu o preceito que conferiu à Anistia o caráter amplo, geral e irrestrito pelo qual clamavam as oposições. Não há, ao longo dessa longa história que se estende por 19 anos, o menor traço ou gesto que possa ser lido como um anseio dos governos militares por se protegerem. A Anistia que tivemos foi aquela pela qual clamavam os opositores do regime. Ninguém se mobilizou por uma anistia ampla, geral e irrestrita, menos ampla, menos geral e menos irrestrita, que excluísse os agentes do Estado. Portanto, essa história de que houve uma auto-anistia é mais uma das tantas mentiras sacadas da cartola para ser inserida nas cacholas menos esclarecidas. Ou seja, para enganar quase todos. A Anistia foi concedida pelo Parlamento, portanto, não pode ser "auto" coisa alguma.
Apesar de as coisas terem transcorrido desse modo, a mentira muito repetida, insiste, agora, em que a desejada e pleiteada Anistia, além de autoconcedida, foi uma injustiça. Também acho injusto que terroristas, guerrilheiros, assassinos e assaltantes, responsáveis por mais de uma centena de mortes, andem soltos e recebendo gordas indenizações. Digo outro tanto de quem abusou do poder, torturou e seviciou. Tais impunidades não são justas! Mas a Anistia não foi concebida para servir à Justiça. Ela serviu ao perdão, ao esquecimento, à pacificação nacional e à boa Política. Infelizmente há quem só saiba operar politicamente num ambiente crispado por ódios e ressentimentos.
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* Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.
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