Múltiplo e genial, Nelson Rodrigues foi e fez tantas coisas admiráveis que sobreviveu à morte física ocorrida em 1980: seu último dia de vida foi também o primeiro na eternidade. O Nelson dramaturgo inventou o teatro com diálogos em brasileiro. O ficcionista devassou o universo habitado por aquela que muitos anos depois seria batizada de “nova classe média”. O cronista que via a vida como ela é criou metáforas luminosas, frases imortais, imagens sublimes e personagens que resumem não o que os nativos gostariam de ser, mas o que efetivamente são. E o apaixonado por futebol descobriu, por exemplo, que “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”. Fora o resto.
Quem usa a cabeça para pensar sabe que alguém assim não cabe mesmo em livros de bom tamanho. O cérebro deserto de Dilma Rousseff acha possível espremer Nelson Rodrigues numa frase, no máximo um parágrafo que irrompe caindo de bêbado no meio da discurseira sem pé nem cabeça. Ora pinçando personagens, ora adaptando imagens arbitrariamente, ela já disse o suficiente para constatar-se que nunca leu Nelson Rodrigues ─ ou leu e nada entendeu. Mas desde setembro de 2012 não tem hesitado em exumar, para tratar invariavelmente a pauladas o escritor que nem teve o desprazer de conhecer a doutora em nada.
As pancadarias recomeçaram em março, quando Dilma decidiu tranformar uma metáfora popularizada por Nelson na frase síntese da Copa de 2014. “O escrete é a pátria em chuteiras”, escreveu o cronista centenas de vezes. A pátria em chuteiras, título de um coletânea de suas crônicas sobre futebol, virou “pátria de chuteiras”. Em 29 de abril, no meio de falatório em Campo Grande, Dilma decidiu juntar a expressão deformada ao besteirol inspirado numa das teses expostas por Nelson Rodrigues. Veja no que deu:
“Uma outra coisa importantíssima surgiu no Brasil, importantíssima. E eu vou falar o que é. Ela está ligada, de uma certa forma, a uma crônica feita por um senhor que se tivesse nascido em qualquer lugar de língua inglesa seria considerada gênio lá. (…) Ele fez uma crônica ─ ele chamava Nelson Rodrigues, ele era muito engraçado ─ ele fez uma crônica que chamava “Complexo de Vira-lata”. Ele dizia que ─ isso foi na época, se eu não me engano, do jogo com a Suécia, final com a Suécia, não tenho certeza, mas foi na final, um pouco antes da final com a Suécia ─ ele fez uma crônica que ele dizia o seguinte: que o Brasil tinha complexo de vira-lata e que ele não podia ter complexo de vira-lata, e que a equipe era boa, tanto que a equipe era boa que ela era boa tecnicamente, taticamente, fisicamente, artisticamente. Tanto é que nós dessa vez ganhamos a Copa. Mas ele sempre falava desse complexo de vira-lata que pode… a gente pode traduzir como um pessimismo, aquela pessoa que sempre acha que tudo vai dar errado, que ela é menor que os outros. E ele dizia uma coisa, e eu queria dizer isso para vocês. Ele dizia que se uma equipe entra… eu não vou citar literalmente, não, mas se uma equipe entra para jogar com o nome Brasil, se ela entra para jogar com o fundo musical do Hino Nacional, então ela é a pátria de chuteiras”.
Neste sábado, Nelson Rodrigues foi convocado para festejar a reabertura do estádio Mané Garrincha, em Brasília, em companhia do craque que batiza outra arena inaugurada sem ficar pronta: “O Garrincha, na sua simplicidade, era um jogador que demonstrou que o Brasil não era de maneira alguma, nem tinha por que, era um vencedor, e não tinha porque ter esse arraigado complexo de vira-lata que o nosso cronista esportivo Nelson Rodrigues, um dos maiores teatrólogos do nosso país, nas vésperas da Copa do Mundo, da Copa da Suécia, denunciou a existência pela quantidade de gente que previa um fracasso”.
Eis aí uma Pacheco de terninho, murmuraria Nelson Rodrigues se ouvisse essa reinterpretação do que escreveu em 1958 (antes do início da Copa da Suécia, não às vésperas da final). O complexo de vira-lata, lembrei mais de uma vez neste espaço, apareceu em 1950, quando a derrota na final contra o Uruguai transformou o brasileiro no último dos torcedores, e sumiu dez anos depois, com o triunfo na Suécia. A praga que assola o País do Carnaval é a síndrome do Brasil Maravilha, decorrente do acasalamento da mitomania delirante com a safadeza eleitoreira. O colosso inventado pelo lulopetismo é um pobretão que traja um fraque puído nos fundilhos.
Entre os flagelos que atormentam os trêfegos trópicos se incluem mais de 10 milhões de analfabetos, um sistema de saneamento básico que só cobre metade das moradias, cicatrizes apavorantes no sistema de saúde, um sistema de ensino em frangalhos, favelas miseráveis penduradas em morros sem lei, fronteiras fora do alcance do Estado, zonas de exclusão que encolheram o mapa oficial em milhões de quilômetros quadrados, a violência epidêmica, a corrupção endêmica, a incompetência dos governantes, a inapetência da oposição; há uma demasia de carências a eliminar. O padrinho de Dilma fingiu que os problemas acabaram. A afilhada de Lula repete que só tem complexo de vira-lata não enxerga a potência descrita pelo chefe.
Em Campo Grande, a torturante evocação de Nelson Rodrigues precedeu o besteirol triunfalista: “Eu queria dizer para vocês que nós, nós – o governo federal, o governador, os prefeitos, os empresários, os trabalhadores, a sociedade –, nós entramos para jogar o nome Brasil aqui, e ao som… e com o fundo musical do Hino Nacional”, viajou a presidente. “Não tem quem nos derrote se não acharmos nós que já estamos derrotados. Não tem quem nos derrote! Isso é o que garante a nossa força, é o fato de que juntos ninguém nos derrota”.
Os grandes momentos de Nelson Rodrigues nunca ficarão grisalhos. Continuarão encantando o mundo daqui a 500 anos, como ocorreu com a obra de William Shakespeare. Um mundo feito de dezessete peças, nove romances, sete livros de contos e crônicas e milhares de artigos em jornais, merece mais que uma única vez sobre a face da Terra. Não merece ser insultado por ignorantes no poder. Não pode continuar exposto às caneladas desferidas por uma presidente que não sabe juntar sujeito e predicado ─ e que em poucos anos estará enterrada, ao lado do criador, na vala comum das cretinices históricas.
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