Há 19 anos, o esporte perdia um dos seus maiores ídolos; jornalista relembra o dia da triste tragédia
01 de maio de 2013 | 11h 35
Livio Oricchio - O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - Há exatos 19 anos registrei em minha memória uma experiência que jamais será esquecida. Vi Niki Lauda dizendo, em tom de cobrança, a Ayrton Senna, pouco antes da largada do GP de San Marino de 1994, em Ímola: "Você tem de tomar a iniciativa, só você tem força para liderar um movimento desses".
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Lauda, campeão do mundo em 1975, 1977 e 1984, assessor do presidente da Ferrari e seu amigo, Luca di Montezemolo, já havia conversado com Ayrton sobre a necessidade de recriar a associação dos pilotos (GPDA) a fim de cobrar maior segurança na Fórmula 1. Naquele instante, pouco depois das 13 horas do dia 1.º de maio, todos se preparavam para a largada da corrida, a terceira da temporada, profundamente chocados.
No dia anterior o austríaco Roland Ratzenberger falecera em decorrência do violento choque de seu Simtek no muro da curva Villeneuve. E sexta-feira Rubens Barrichello, da Jordan, havia sofrido terrível acidente também, na Variante Baixa, mas sobrevivera apenas com fratura no nariz e leves lesões generalizadas.
Ayrton ouviu Lauda e, sério, lhe lembrou que na reunião programada para quarta-feira os dois iriam discutir a questão. Desde a etapa anterior, em Aida, no Japão, Ayrton nos dizia que aqueles carros estavam "incrivelmente nervosos". A FIA proibiu quase todos os recursos eletrônicos em 1994 e não reduziu a potência dos motores.
Recursos como a suspensão ativa, responsável por garantir grande geração de pressão aerodinâmica, e o controle de tração, importante para manter a dirigibilidade do carro nas saídas de curva, não mais podiam ser utilizados. "Está claro para todo mundo que esses carros são difíceis de pilotar e é muito fácil o piloto perder seu controle", comentou Lauda com os jornalistas. Eu estava dentre eles.
Ayrton trazia o mesmo semblante do primeiro dia no autódromo Enzo e Dino Ferrari, quinta-feira: tenso. Nós os esperávamos, no início da tarde, para entrevistá-lo e, quando chegou, seu estado de espírito era evidente. Estava finalmente na equipe Williams, "a de outro planeta", como a definia, time oficial da Renault, com seu motor V-10, e depois de duas provas não somara nenhum ponto.
Já Michael Schumacher, da Benetton, escuderia oficial da Ford com seu motor V-8 apenas, vencera as duas etapas anteriores, no Brasil e em Aida. Para complicar seu quadro emocional, o amigo Rubinho dera um susto em todos, na primeira classificação, sexta-feira - eu estava no Hospital Maggiore de Bolonha quando Ayrton foi visitá-lo à noite - e no sábado Ratzemberger morreu.
Anos mais tarde, o médico da Fórmula 1, e amigo de Ayrton, o notável doutor Sid Watkins nos contou que o orientou a não disputar o GP de San Marino. "No sábado à noite conversamos, ele me expôs suas aflições e fiquei impressionado. Um ser humano não poderia competir numa atividade com a Fórmula 1 naquele estado emocional. Disse a Ayrton para não correr."
Ayrton lhe respondeu não ser possível. O que diria a Frank Williams e aos representantes das empresas que investiam na escuderia, por exemplo? Já no sábado, depois do anúncio da morte de Ratzemberger, Ayrton não regressou à pista. Mas seu tempo lhe garantiu a pole position. O neurocirurgião inglês Sid Watkins faleceu em setembro do ano passado, aos 84 anos.
Na realidade, Ayrton reagia de maneira distinta do comum desde a quinta-feira, quando pediu para sentarmos com ele no motorhome da Williams, enquanto almoçava, já depois das 15 horas. Acabara de chegar de uma cidade próxima, onde estivera para o lançamento de um bicicleta com o seu nome. Tinha os cabelos longos, olhar distante, como se algo, ou um conjunto de coisas dominasse seus pensamentos.
Havia a pressão do campeonato, em que todos esperavam muito dele, mas até então não somara pontos, e as incerterzas de um enorme investimento realizado dias antes, ao se tornar representante da marca Audi no Brasil. Mais para a frente no fim de semana teve de conviver com novas tragédias na Fórmula 1 e circulou a notícia de que seu irmão, Leonardo, presente na Itália, lhe apresentara gravações de conversas comprometedoras de sua namorada, Adriane Galisteu.
Esse era o quadro assustador de Ayrton antes da largada daquele GP de San Marino. Lembro-me de vê-lo passar do meu lado, sábado, ao deixar o centro médico do autódromo, quando foi se informar sobre Ratzemberger. Ayrton claramente havia chorado muito lá dentro.
Quem chorou mais, no entanto, foram milhões e milhões de fãs de Ayrton, no mundo todo, no dia seguinte, quando a doutora Maria Tereza Fiandri anunciou às 19h05, hora local, 14h05 de Brasília, no Hospital Maggiore de Bolonha, para nós, jornalistas: "Senhores, por favor. Desde as 18h40 Senna não registra mais atividade cardíaca. Ele está morto".
O doutor Sid Watkins, o mesmo que desejava ver Ayrton fora daquela corrida, nas muitas conversas que manteria conosco nos anos seguintes sempre dizia: "A morte de Ayrton permitiu a sobrevivência de muitos de seus colegas".
Em conjunto com o presidente da FIA, Max Mosley, Watkins criou o que viria a se chamar mais tarde Instituto de Segurança para os Esportes a Motor. "A grande diferença entre o que se fazia até o ocorrido em Ímola e agora é a metodologia de estudos. Tudo tem uma base científica e quando incorporada nos carros ou na segurança dos circuitos ou no atendimento médico é já o resultado de experimentos práticos também. Sabemos que vai funcionar", explicava sempre Watkins.
É imensa a lista de mudanças significativas introduzidas no automobilismo depois das tragédias daquele GP de San Marino de 1994. Alguns exemplos: o cockpit dos carro protege muito mais o piloto, está menos exposto. O testes de resistência a impactos do monocoque, onde se encontra o cockpit, são muito mais exigentes. Bem como nos capacetes. Os pilotos dispõem do Hans, sistema que protege a coluna cervical nos casos de impactos. O serviço de resgate nos acidentes foi padronizado.
Mais: A retirada do piloto do cokcpit obedece rigoroso procedimento. As áreas de escape dos autódromos foram sensivelmente ampliadas. Adotou-se, em alguns pontos, o chamado softwall, muro capaz de absorver parte da energia do choque. Os ambulatórios dos autódromos são hoje minihospitais bem equipados.
E muitos outros recursos destinados a melhorar a segurança de todos estão sendo estudados, como a cobertura do cockpit, o airbag e proteção para que no caso de os pneus se tocarem os carros não decolarem.
Esta quarta é uma data triste, pela perda de um grande homem, de um excepcional piloto, dentre os maiores da história, mas ao mesmo tempo, por mais paradoxal que possa parecer, de ter o que celebrar num certo sentido: esse aumento exponencial da segurança. Desde então a Fórmula 1 não conviveu mais com tragédias. E quantas não foram as ocasiões em que, sem a espantosa evolução vivida desde 1994, os acidentes não teriam sido fatais?
Caso você tenha interesse, disponibilizo a seguir o nono capítulo que redigi no seriado sobre a perda de Ayrton Senna. Foi há bons anos. É um texto direto, sem grandes preocupações formais, mas relata em detalhes o que experimentei logo depois do choque da Williams no muro da curva Tamburello. Boa leitura!
Capítulo 9: A doutora Fiandre anuncia no Hospital Maggiore de Bolonha: "Senna está morto"
Capítulo 9: A doutora Fiandre anuncia no Hospital Maggiore de Bolonha: "Senna está morto"
Faz tempo, reconheço, mas estamos de volta. E acho que valeu a pena esperar. Para quem quer saber mais detalhes daquele triste 1.° de maio de 1994, o capítulo de hoje, acredito, irá impressionar. Nós viajaremos desde a minha saída do autódromo Enzo e Dino Ferrari, no início da tarde, depois do acidente, até o momento do anúncio da morte de Ayrton Senna, no Hospital Maggiore de Bolonha, para onde ele foi transportado de helicóptero depois do impacto na curva Tamburello.
A não ser o nome dos médicos com quem conversei naquele dia, resgatados em meus arquivos, o que você lerá a seguir vem puramente do que ficou registrado em minha memória e até hoje não contato para ninguém, ao menos no nível de aprofundamento que iremos abordar. Repito: são descrições chocantes, que só interessam aos que, de fato, buscam conhecer os detalhes de tudo o que cercou a morte do maior ídolo esportivo da história do nosso país.
Enquanto me dirigia pela terceira vez de Ímola para o Hospital Maggiore no fim de semana, várias vezes recordo-me de ter recorrido a Deus, solicitando-lhe que preservasse a vida de Senna. No princípio eu imaginava que o impacto não fora fatal, mas depois de ouvir de Angelo Orsi,o fotógrafo amigo de Senna, uma descrição mais precisa do que se passara durante o atendimento médico ainda na pista, tinha consciência de que o quadro era grave. Só não imaginava que se tratava de uma situação irreversível.
No Brasil, era domingo de manhã, e não me lembro de ter ligado para os jornais que trabalhava e onde estou até hoje, Estadão, Jornal da Tarde e Agência Estado, para informar-lhes de que havia deixado o autódromo. Para mim a Fórmula 1 não interessava mais. Tudo o que eu precisava saber, como cidadão e jornalista, era se Senna sobreviveria. O resultado do GP de San Marino tonara-se irrelevante.
Várias vezes tive de dizer a mim mesmo, nos cerca de 50 quilômetros que separam o circuito do hospital, que eu estava sonhando. Aquilo era realidade. Eu me dirigia até Bolonha para saber se Senna ainda estava vivo. Era a minha terceira corrida como contratado da empresa para cobrir a Fórmula 1. Eu pensei comigo: se Senna morresse, todas as atenções estariam lá na Itália, ao menos até o embarque do corpo para o Brasil.
Eu estava sozinho, seria o responsável por levar aos leitores dos jornais de casa um painel de informações de tudo. Que responsabilidade!
Isso fez eu me concentrar quase doentiamente no meu trabalho e deixar as emoções, ao menos as maiores, de lado. Frieza, exigi de mim mesmo, no caminho enquanto dirigia o carro. Ao mesmo tempo, comecei a elaborar uma estratégia de cobertura. As notícias estariam no hospital, mas também no autódromo. Era imprescindível ouvir também Frank Williams, dono da equipe de Senna, Patrick Head e Adrian Newey, os homens que assinaram o projeto do modelo FW16 pilotado por Senna.
Estacionei o carro no hospital e até então não deparei com nada de diferente na sua rotina. Eu imaginava que haveria gente por todo o lado a fim de acompanhar uma eventual cirurgia em Senna. De imediato compreendi que eu chegara bastante cedo ao hospital, a ponto de entrar no edifício e não ver um único jornalista. No fim de uma rampa que dá acesso a um saguão central, para onde todos se direcionam ao entrar no hospital, vi a primeira manifestação de que Senna estava lá.
Um policial, um carabinieri, estava agitadíssimo. Alguém acabara de lhe dizer que o piloto se acidentara e há pouco havia chegado ao hospital, transportado de helicóptero. Ele tinha o chapéu na mão e gritava, sem controle: "Meu Deus, o que é isso, não existe mais piloto como Senna, que corre com o coração". Eu o ouvi e rapidamente entrei no saguão atrás de notícias. Estava meio trêmulo. Apesar da tentativa de manter-me tranquilo, nunca fui um exemplo de equilíbrio emocional e com um agravante, costuma somatizar os dramas.
Mas ali não havia jeito. Se eu falhasse estaria desperdiçando a minha grande chance profissional, que eu tanto lutara na vida, ou seja, cobrir o Mundial de Fórmula 1 para a grande mídia imprensa brasileira. Cada vez que me lembrava disso ganhava força para deixar de lado as minha emoções. Deixei de pensar também nas reações que estavam ocorrendo no Brasil por conta do acidente de Senna, o que colaborou para eu me controlar.
Nesse momento vi Roberto Cabrini, repórter da TV Globo, com quem sempre tive boa relação profissional, e um pouco mais tarde Celso Itiberê, o correspondente do jornal o Globo em Milão e responsável pela cobertura do campeonato para a empresa carioca. Fui informado pela administração do hospital de que o centro de recuperação, ou a UTI, era no 11.° andar do edifício.
Não encontrei no hospital um único cidadão que tivesse um mínimo de sensibilidade com o que estava se passando: um piloto de Fórmula 1, ídolo em dezenas de países, lutava para viver e esses pseudo-profissionais continuavam sendo mal-educados, grossos e desinteressados. Mais para frente vou lhes contar um episódio envolvendo-os que é de chocar. O que faltava de bom senso aos funcionários do hospital sobrava aos médicos deslocados para o atendimento. Todos solícitos e não escondendo nenhumam informação.
Nos foi orientado que não subíssemos ao 11.° andar, mas era impossível atender o pedido do hospital. A notícia estava lá. E eu não errei ao decidir pagar para ver. Logo que sai do elevador encontrei um médico com as roupas usadas no centro cirúrgico. O senhor veio lá de dentro, viu o Senna, pode me dizer alguma coisa? Perguntei, meio afobado, imaginando ouvir um desaforo. Se ele fosse um animal irracional como os outros que trabalhavam no hospital, essa deveria ser a sua reação.
Para a minha surpresa, nada disso ocorreu. Descobri tratar-se do doutor Servadei, umdos que atendeu Senna ainda na pista e o acompanhou no helicóptero até o hospital. Apesar de profissional, ele estava abalado. Com voz baixa, começou a descrever o que vivera naquela última hora. Ele é quem fala:
"Antes mesmo de retirar o capacete, ficamos impressionados com a quantidade de sangue que o piloto perdia. Alguma artéria havia sido atingida com certeza e minha primeira preocupação era, uma vez exposta a cabeça de Senna, tentar conter a hemorragia. Quem orientou a complexa retirada do capacete foi o doutor Watkins, o médido da FIA. Mas tão logo tivemos acesso a sua cabeça, sem o capacete e a balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria.
Vimos que toda a base craniana estava aberta e ele perdia massa cefálica, cérebro, pelo corte de mais de um centímetro de largura, que corria por trás das orelhas, de lado a lado da cabeça, aberta. Para mim ele havia batido a cabeça no muro da curva Tamburello, em alta velocidade. Isso explicava aquele traumatismo generalizado da caixa craniana."
Depois de ouvir aquilo, estava claro para mim que não havia mais o que fazer. A morte de Senna era uma questão de tempo. Pouco tempo. Lembro-me de ter procurado um lugar para sentar e dizer a mim mesmo que aquilo era verdade. Nesse instante passou a circular a informação de que os médicos do caso falariam no centro de conferências do hospital, no térreo. Profundamente abatido, sem saber o que pensar, fui para lá, sempre transportando o meu bloco de anotações o velho computador laptop Toshiba 1000, uma peça de museu se comparada aos que uso hoje.
Na mesa do centro de conferência ficaram de pé, nenhum deles sentou, o doutor Domenico Cosco, a doutora Maria Tereza Fiandri, que entrou para a história por ter anunciado, oficialmente, às 19h05, a morte de Senna, o doutor Andreolli, neurocirurgião, o doutor Servadei e o doutor Gordini, anestesista.
O primeiro a falar foi Andreolli, que descreveu o quadro como o mais traumático possível, citando um valor numa escala desenvolvida por um medalhão da neurocirurgia que não me recordo. "Não existe uma área específica do cérebro que podemos atuar para a reparação, tudo foi danificado no acidente. O traumatismo é genérico bem como os danos a todo o tecido nervoso", dizia ele.
Entre eu conversar com o doutor Servadei no 11.° andar e a conferência passou cerca de uma hora e já havia muitos repórteres para acompanhar o caso. Na sala de conferência pude observar até mesmo doentes de pijama, que sabiam da internação de Senna em estado de emergência.
A consternação pelo anunciado pelo doutor Andreolli foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que Senna, quase um ídolo da humanidade, aquele que parecia imortal, morreria no máximo em questão de horas.
Entrei em contato com o nosso chefe de reportagem na época, coordenador do "pool" de jornalistas de esportes do Estadão e JT, Castilho de Andrade, hoje editor do JT, para lhe informar onde estava, o que já apurara e o que viria pela frente. Como eu teria de escrever um volume respeitável de textos naquele dia, Castilho sugeriu que eu já enviasse o primeiro com o que apurara até então. Achei prudente. Sentei nuna das cadeiras da sala de conferência e conectei meu laptop em uma tomada que descobrira ali, próximo da mesa dos médicos, que já deixaram o local.
Nesta hora surge um cidadão, daqueles imbecis que há pouco citei, dizendo-me que não poderia ficar aí. "Vou fechar esta sala", disse-me com a maior agressividade pensável. Eu lhe pedi que me desse uns 50 minutos para redigir um texto, isso em nada alteraria a rotina do hospital. Quase sem olhar para mim o animal foi até o centro de controle de luzes da sala e me ameaçou, com a mão nas chaves elétricas, ao me informar que se eu não saísse de lá naquele instante ele desligaria a luz do ambiente. Não tive alternativa. Minha vontade era de agredi-lo. Não disse nada e saí.
Voltei a falar com o doutor Servadei, o do helicóptero. Ele me deu mais detalhes: "A hemorragia que Senna tinha ainda na pista era tão violenta que durante o vôo até o hospital nós lhe re-implantamos 4,5 litros de sangue, enquanto circula pelo nosso organismo cerca de 6 litros de sangue." Ele também falou da perda de líquor, líquido existente entre as camadas nervosas que envolem todo o tecido nervoso, a fim de protegê-lo. "Na delaceração ocorrida no seu cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que começou a deformar rapidamente suas feições."
Toda vez que essas camadas são rompidas, o líquor, mantido sob elevada pressão entre elas, se espalha pelas cavidades que encontra, causando o edemaciamento (inchaço) de todos os tecidos. Em outras palavras, o rosto, a cabeça de Senna estava se deformando rapidamente, ganhando volume.
O doutor Gordini, o anestesista, contou-me também o que ocorreu no helicóptero: "Senna teve uma depressão respiratória bastante séria. Nós administramos drogas que reveteram o quadro, mas mesmo que ele não tivesse sofrido os estragos todos no cérebro, decorrentes do impacto no muro, só aquela depressão já lhe teria causado danos irrevesíveis no tecido nervoso. Ele teria apenas vida vegetativa. Seu cérebro recebeu pouco oxigênio durante alguns segundos preciosos. No centro de treinamento, Senna chegou a ter uma parada respiratória, quando o que restou do seu cérebro ainda exibia atividade elétrica. De novo nós o reanimamos."
Observe, amigo internauta, que em nenhum momento os médicos falaram em afundamento do frontal, causado por algum componente do carro que se projetou na direção da cabeça no momento do impacto. Hoje acredita-se que a barra que conecta a roda do carro ao conjunto mola-amortecedor, denominada push-rod, é que perfurou a viseira do capacete, presisonando a cabeça de Senna contra a parte de trás do cockpit. Essa compressão é que teria causado a fratura da base do crânio. Os médicos apenas me citaram intensa hemorragia originada do rompimento da artéria temporal.
Recapitulando: pouco antes das 16 horas eu já estava no Hospital Maggiore e conversava com o doutor Servadei, na porta do centro de reabilitação. Às 16h30 a doutora Fiandri anunciou no centro de conferências do hospital que o neurocirurgião, doutor Adreoli, falaria sobre o estado de Senna. Ficamos sabendo que não havia como intervir cirurgicamente e que a morte era uma questão de horas. Depois voltei a falar com os médicos que me deram mais informações do atendimento. A doutora Fiandri, que se tornou uma espécie de porta-voz do grupo médico, nos avisou que só se pronunciaria se tivesse "alguma novidade."
Às 17h55, ela surge novamente no saguão principal do hospital, na porta do pronto-socorro. A esta altura o hospital não mais permitia o acesso ao 11.° andar, onde estava Senna, no centro de recuperação. Visivelmente emocionada, a doutora Fiandri informou que o eletro-encefalograma de Senna não acusava mais atividade elétrica. "Senna tem morte cerebral".
Boa parte dos profissionais de imprensa que estava no autódromo, a esta altura, lotava o hospital. Para a maioria, aquele foi o primeiro contaro com os médicos que cuidavam de Senna. A notícia, esperada pelos que estavam lá, novidade para eles, causou comoção em todos.
Estava difícil falar nos raros telefones públicos do hospital. A telefonia celular de longa distância apenas começava. O comunicado da doutra Fiandre era, no fundo, a morte de Senna. Seu coração continuava batendo, mas não por muito tempo. Vi pessoas chorando, dentre eles jornalistas muito emocionados também. Eu ainda não chorara, talvez por conta daquele preparo a que me submeti, dizendo a mim mesmo que ao menos enquanto estivesse ali, atrás de informações, eu mantivesse a situação sob controle.
Todos nós, jornalistas, precisávamos nos comunicar com nossas bases, para de novo informar do andamento das notícias. A doutora Fiandri, por exemplo, disse que só voltaria a falar com a imprensa às 21 horas, ou se "tivesse alguma novidade". Isso depois de anunciar a morte cerebral do piloto, às 18h05, dez minutos após sair pela porta do pronto-socorro e depois que o empurra-empurra que se estabeleceu a sua volta se acalmasse.
Sua previsão para a morte legal de Senna falhou. Às 19h05 ela surgiu de novo, proveniente do pronto-socorro. Não era onde estava o piloto.
Com os olhos marejados, ela falou em voz pausada, carregada de emoção, enquanto não se ouvia um ruído sequer a sua volta, apesar da presença de centenas de jornalistas. Todos precisavam ouvir para acreditar: "Senhores, por favor. Desde às 18h40 Senna não registra mais atividade cardíaca. Ele está morto".
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