Vale-tudo pelo lucro e falta de fiscalização de autoridades matam impunemente no Brasil
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), resultou da associação perversa e criminosa da cobiça cega de um capitalismo de vale-tudo, sem código de conduta nem esteio moral, com um Estado estroina, corrupto, incompetente e incapaz de garantir ordem, paz, segurança pública, a vida e a integridade física de seus cidadãos. Não se trata de um fenômeno exclusivo do subdesenvolvimento endêmico do qual países emergentes como o nosso parecem nunca sair, principalmente no que concerne ao espírito e às mentalidades. O mundo inteiro foi assaltado pela brutalidade da busca incessante da fortuna fácil e do desprezo ao trabalho e à conduta moral que deveria reger a vida em sociedade neste século 21, depois da visita à Lua e do telefone portátil, que conecta seu usuário com as notícias do dia, as cotações do mercado de capitais e as manifestações mais escabrosas da miséria humana. Incêndios em boates são comuns e ocorrem em ambientes fechados e abarrotados de material inflamável, produzindo assim vítimas de morte às centenas e crônicas de grosseria e insensibilidade, antes, e de comoção e solidariedade, depois.
No Brasil, a peculiaridade apresenta-se em algo que os comentaristas de arbitragem de futebol e os membros da Academia de Cinema de Hollywood chamariam de “o conjunto da obra”. O incêndio da boate gaúcha ocorreu numa cidade que homenageia o espírito que se identifica com o afeto materno, a mãe do Salvador, que reúne em sua aura toda a luz da generosidade, do altruísmo, da capacidade de renúncia e da piedade que um mortal é capaz de sentir e expressar. O momento também é peculiar nosso: a maior seca dos últimos 30 anos no semiárido nordestino torna a escassez ainda mais cruel, as famílias desabrigadas pelas enxurradas na Serra e na Baixada Fluminenses ainda não têm um teto para abrigá-las e o sangue de policiais e inimigos da lei continua empoçado no asfalto precário das vielas da periferia da maior cidade da América do Sul. Às vésperas do carnaval, intempéries naturais, brutalidades pessoais e deficiências institucionais reduzem a expectativa de vida de seres humanos e animais numa tragédia que se repete e se amplia indefinidamente.
Nunca se saberá quantas das mais de 230 vidas ceifadas pelo fogo na boate Kiss seriam poupadas se seus proprietários houvessem obedecido às normas de segurança de edificações às quais acorrem multidões para ouvir, cantar, dançar e se divertir. Quem permitiu que aquele bando de jovens em busca da felicidade efêmera de uma balada arriscasse a vida em meio a fiações e equipamentos eletrônicos capazes de gerar faíscas que se transformariam em labaredas no material inflamável é um assassino serial em potencial e como tal deveria ser tratado depois de contados os cadáveres carbonizados e os prejuízos materiais. Quantos dos jovens imolados deixariam de ser incinerados se não tivessem sido barrados por agentes de segurança empenhados apenas em garantir o pagamento das comandas de consumo, em vez de permitirem a fuga de uma multidão empurrada para fora do lugar pelas chamas? Neste crime se acumpliciam donos e empregados, brutos adoradores do bezerro de ouro, que levam mais em conta a dívida do que a perda da vida.
Nesta Pátria da impunidade, madrasta malvada, quem acredita que alguém será punido? Quem já o foi? Os rústicos proprietários dos barcos apinhados de passageiros que naufragam no caudal da Bacia Amazônica ou nos fios de água do Velho Chico? Quem pagou pela plateia queimada no circo de Niterói, a maior tragédia de nossa história? Quem respondeu pelo afundamento do Bateau Mouche na Baía da Guanabara ou pelos prédios que desabam em reformas mal feitas no centro do Rio? Uma Justiça leniente acaba o serviço macabro que começa na cobiça, sua colega em matéria de cegueira crônica.
No meio do caminho entre o fogo dos sinalizadores e a falta de uso do martelo do juiz figura a incapacidade do Estado brasileiro – municípios, Estados e União – de produzir leis adequadas para proteger o cidadão que trabalha, mora ou se diverte e, sobretudo, de fazer com que as existentes, muito numerosas e pouco eficazes, sejam cumpridas. Os decibéis dos equipamentos eletrônicos da balada da Kiss não perturbaram o sono dos fiscais de Santa Maria, cujo gestor municipal fez vista grossa à desobediência das próprias posturas pelo estabelecimento comercial do qual nunca se omitiu de cobrar impostos. Municípios e o Estado do Rio não gastam um centavo do que recebem da União para prevenir enchentes em seu território, mas voltam a prometer a cada verão trágico novas providências, que nunca serão tomadas nem deles cobradas nas eleições.
A presidente Dilma Rousseff foi a Santa Maria e chorou com pena das famílias que o Estado abandona ao desamparo. Assim como o imperador dom Pedro II jurou que venderia o último diamante da Coroa para não deixar um cearense morrer de fome. Fê-lo mais de cem anos antes de os sertanejos continuarem perdendo tudo, até a própria vida, por causa da sede implacável. As imagens das ruínas da obra inacabada da transposição do Rio São Francisco sem que uma gota de água fosse levada à caatinga mais próxima são a denúncia mais deslavada da hipocrisia generalizada de gestores públicos que, desde o Império até hoje, garimpam votos valiosos na miséria que os donos do poder semeiam em suas posses e colhem na máquina pública que, eleitos pelos súditos, passam a pilotar. Os maganões da República mantêm-se no poder enganando os sobreviventes da seca do semiárido, das enxurradas da Serra Fluminense e deste incêndio em pagos gaúchos.
O Estado brasileiro – as elites dirigentes que se apropriam do dinheiro público no poder em municípios, Estados e na União – é cúmplice da cobiça assassina dos empresários sem lei. Só nos resta rezar por suas vítimas e amaldiçoar os algozes da cobiça cega e do Estado surdo. Já que terminarão impunes, que lhes seja reservado o fogo eterno do inferno.
(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.
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