quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Por que Robespierre escolheu o Terror



RobespierreAs lições da primeira revolução totalitária (1).
As pessoas não devem manter crenças que levam a ações monstruosas. É o mínimo que se deve dizer em resposta a qualquer esforço para desculpar Robespierre. Se a sua ideologia o levou ao genocídio, ele não deveria tê-la seguido.

A atitude americana em relação à Revolução Francesa foi em geral favorável – muito natural para uma nação nascida ela própria de uma revolução. Mas há revoluções e revoluções, e a Revolução Francesa está entre as piores. Sim, em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, ela derrubou um regime corrupto. Mas o resultado desses belos ideais foram, primeiro, o Terror e o genocídio na França e, depois, Napoleão e suas guerras, que custaram centenas de milhares de vidas na Europa e na Rússia. Depois deste massacre inútil veio a restauração do mesmo regime corrupto que a Revolução derrubara. Além de um imenso sofrimento, a revolta nada conseguiu.
Liderando a traição aos ideais iniciais da Revolução e sua transformação em uma tirania de ideologia homicida estava Maximilien Robespierre, um monstro que criou um sistema explicitamente feito para matar milhares de inocentes. Ele sabia exatamente o que estava fazendo, ele fez o que pretendia fazer, e ele acreditava estar certo em fazer o que fez. Ele é o protótipo de um particularmente odioso tipo de malfeitor: o ideólogo que acredita que a razão e a moralidade estão do lado de seus açougueiros. Lenin, Stalin, Hitler, Mao e Pol Pot foram feito do mesmo molde. Eles são os típicos inimigos da humanidade em tempos modernos, mas Robespierre tem boas razões para alegar ter sido o primeiro. Compreender suas motivações e raciocínio aprofunda nossa compreensão dos piores horrores do passado recente e aqueles que podem nos espreitar no futuro.

Historiadores distinguem três fases da Revolução Francesa. A última, o Terror, aconteceu aproximadamente em 1793-94. Começou com a queda dos girondinos moderados e adesão dos jacobinos radicais de poder. Como os jacobinos ganharam o controle do Comitê de Salvação Pública, o qual por sua vez controlava o legislativo (a Convenção), as disputas entre as facções se aguçaram. Depois de um interregno de poder compartilhado, Robespierre tornou-se ditador e o Terror se agravou. Ele tomou a forma de prisões, julgamentos farsescos e a execução de milhares de pessoas, incluindo os líderes dos girondinos e os jacobinos de facções opostas que eram suspeitos de oposição – ativa ou passivamente, real ou potencialmente – às políticas ditadas por Robespierre.
Os partidários de Robespierre fora da Convenção era uma multidão a vagar pelas ruas de Paris, o centro da Revolução. Grandes partes de França foram escassamente envolvidas, para a maioria das pessoas, a vida continuou como antes da Revolução. A multidão em Paris era composta principalmente de marginais sans-culottes (“sem calções”), que se mantinham por uma mistura de crime, prostituição, mendicância e biscates. Robespierre e seus seguidores os incitavam a ação sempre que a conveniência política exigia isso. Mas mesmo sem incitações, e sem nada melhor para fazer, eles formavam a multidão que assistia as execuções públicas, escarnecendo e abusando daqueles prestes a morrer, alegrando-se com as cabeças decepadas, adulando os líderes temporariamente no poder, e os amaldiçoando quando eles caiam. Como moscas, eles estavam em todo lugar que a Revolução seguia em seu caminho sangrento. Seu enfurecido, ansioso zumbido formava o fundo medonho da matança dos inocentes.

Nós não devemos permitir que distância histórica e retórica revolucionária torne obscura a selvageria do Terror. As descrições que se seguem são apenas umas poucas entre muitas que poderiam ser dadas. Stanley Loomis escreve em “Paris in the Terror” que, nos Massacres de Setembro de 1792, “o trabalho sangrento durou cinco (...) dias e noites. Na manhã do terceiro dia, a prisão de La Force foi invadida e aqui ocorreu o assassinato da Princesa de Lamballe (...). O frenesi dos assassinos loucos e bêbados parece ter atingido seu ponto máximo em La Force. Canibalismo, estripação e atos de ferocidade indescritível aconteceram aqui. A princesa (...) se recusou a jurar que odiava o Rei e a Rainha e foi devidamente entregue à multidão. Ela foi executada com um golpe de lança, seu coração ainda batendo foi arrancado do corpo e devorado, suas pernas e braços foram cortados de seu corpo e disparados por um canhão. Os horrores que foram cometidos em seu torso estripado são indescritíveis (...). Tem se suposto levianamente (...) que a maioria das outras vítimas eram, como ela, aristocratas – uma suposição que, por algum motivo curioso, é freqüentemente considerada um atenuante para esses crimes. Muito poucas vítimas foram, na verdade, da antiga nobreza, menos de trinta das mil e quinhentas que foram mortas.”

O que Robespierre tinha liberado foram os mais depravados impulsos de escória da sociedade. A anarquia resultante temporariamente serviu a seu propósito, assim como a Kristallnacht serviu ao de Hitler, os expurgos ao de Stalin, e a revolução cultural ao de Mao. Cada um perpetrou o terror para reduzir os oponentes a uma submissão abjeta e estabelecer-se mais firmemente no poder.

Tendo assegurado Paris, em 1793, Robespierre nomeou comissários para impor sua interpretação da Revolução fora da capital. Na cidade de Lyon, escreve Simon Schama em “Cidadãos”, a guilhotina começou seu trabalho, mas verificou-se ser “uma maneira confusa e inconveniente de eliminação do lixo político (...). Alguns condenados, então, foram executados em fuzilamentos em massa.... Cerca de 60 prisioneiros foram amarrados em uma linha por cordas e fuzilados com canhão. Aqueles que não morreram imediatamente pelo fogo foram mortos com sabres, baionetas e rifles (...). Quando os assassinatos (...) terminaram, mil novecentas e cinco pessoas haviam encontrado o seu fim.” O comissário de Nantes “complementaria a guilhotina com (...) deportações verticais (...). Buracos foram perfurados nos lados das (...) barcaças (...). Os prisioneiros eram postos dentro com as mãos e pés amarrados e os barcos empurrados para o centro do rio (...). As vítimas impotentes assistiam a ascensão de água sobre eles (...). Os presos foram despojados de suas roupas e pertences (...). Moços e moças foram amarrados juntos nus nos barcos. As estimativas das pessoas que morreram desta forma variam muito, mas certamente não foram menos que dois mil.”

No massacre da Vendeia, segundo Schama, “toda atrocidade que se poderia imaginar naquele tempo foi infligida a população indefesa. Mulheres foram rotineiramente estrupadas, crianças assassinadas, ambas mutiladas (...). Em Gonnord (...) duzentos velhos e velhas, juntamente com mães e crianças, foram forçadas a se ajoelhar diante de um grande poço que eles tinham cavado. Eles foram então fuzilados de modo a cair em seu próprio túmulo. Trinta crianças e duas mulheres foram enterradas vivas quando a terra foi jogada no buraco. Em Paris, Loomis escreve, Robespierre ordenou à corte de farsantes [2], também conhecida como Tribunal Revolucionário, ser “tão ativa quando o próprio crime e concluir todos os casos dentro de vinte e quatro horas”. “As vítimas eram conduzidas para a sala de audiência pela manhã e, não importando quantas poderiam ser, seu destino estava decidido no máximo até as duas horas da tarde do mesmo dia. Por volta das três horas seus cabelos eram cortados, suas mãos amarradas e elas eram postas nos carros dos condenados em seu caminho para o cadafalso”. “Entre 10 de junho e 27 de julho de 1793 (...) 1.366 vítimas pereceram”. A maioria dessas pessoas eram inocentes de qualquer crime e não podiam se defender contra acusações das quais elas sequer eram informadas.
Essas atrocidades não foram infelizes excessos indesejáveis de Robespierre e seus partidários, mas as previsíveis conseqüências de uma ideologia que dividia o mundo entre os “amigos” e os subumanos “inimigos”. A ideologia era o repositório da verdade e do bem, a chave para a felicidade da humanidade. Seus inimigos tinham que ser exterminados sem piedade porque eles estavam no caminho. Como os ideólogos viam, o futuro da humanidade era uma aposta alta o bastante para justificar qualquer ato que servisse a seu propósito. Como Loomis escreveu, “Todos os que desempenharam um papel nesse drama (…) acreditavam que estavam motivados por patrióticos e altruístas impulsos. Foram capazes de valorizar mais as suas boas intenções que a vida humana. Não há crime, nem assassinato, nem massacre que não possa ser justificado, se provado que foi cometido em nome de um ideal”.

O ideal, no entanto, era simplesmente o que Robespierre dizia que era. E a lei era o que Robespierre e seus seguidores desejavam que fosse. Eles mudavam isso a seu bel-prazer e determinavam se sua aplicação num caso particular era justa. A justificação de monstruosas ações apelando a um ideal passionalmente conduzido, elevado a protótipo de razão e moralidade, é uma marcante característica de ideologias políticas no poder. Para os comunistas, era uma sociedade sem classes. Para os nazistas, pureza racial. Para os terroristas islâmicos, sua interpretação do Corão. A característica comum é que o ideal, de acordo com seus verdadeiros crentes, é imune à crítica racional ou moral, porque ele é o que determina o que é razoável e moral.

Norman Hampson nota em sua biografia de Robespierre que “o tribunal revolucionário (...) tinha-se tornado uma máquina de assassinato indiscriminado. (...) Imaginárias (...) conspirações e acusações absurdas eram acontecimentos cotidianos”. Como Robespierre deixou claro: “Deixe-nos reconhecer que há uma conspiração contra a liberdade pública (...). Qual é o remédio? Punir os traidores.” Hampson escreve: “Robespierre tomou a atitude que a clemência (...) era uma forma de auto-indulgência sentimental que teria de ser paga em sangue”. Ele declarou: “Existem apenas dois partidos na França: o povo e seus inimigos. Temos que exterminar esses vilões miseráveis que estão eternamente conspirando contra os direitos do homem (...), temos que exterminar todos os nossos inimigos.”

Robespierre, conta Schama, “se rejubilou que ‘um rio de sangue agora separa a França de seus inimigos’.”

O resultado desse clima de histeria foi o Decreto de Robespierre do dia 22 de Prairial. Ele “expressava, em princípio, a opinião de todo o Comitê [de Salvação Pública]”, escreve J. M. Thompson em sua biografia de Robespierre. “O Comitê era fanático o suficiente para aprovar, e a Convenção poderosa o suficiente para impor, como um Novo Modelo da justiça republicana (...) uma lei que negava aos presos com a ajuda de um advogado, tornava possível ao juiz dispensar testemunhas, e não permitia qualquer sentença além da absolvição ou a execução. Uma lei que, ao mesmo tempo, definia crimes contra o Estado em termos tão amplos que a menor indiscrição alguém poderia incorrer no artigo de morte. Para qualquer homem sensato ou misericordioso tal procedimento deve parecer uma paródia de justiça.”

Fortalecido por este modelo republicano de justiça, o Tribunal Revolucionário enviou à morte 1.258 pessoas em nove semanas, tantos como durante os 14 meses precedentes. “O fato inescapável” sobre Robespierre, nota Hampson, é que “no âmbito de um sistema judicial que ele iniciou e ajudou a dirigir (...) um governo do qual ele era, talvez, o membro mais influente, perpetrou as piores barbaridades do Terror (...). Nenhuma defesa é possível para os indiscriminados massacres (...) em que (...) uma taxa média de trinta e seis pessoas por dia foram enviados para a guilhotina.”

Robespierre “tornou-se tão incapaz de distinguir o certo do errado – para não mencionar crueldade de humanidade – como um cego de distinguir a noite do dia.” Vamos agora tentar entender o seu estado de espírito.

Robespierre nasceu em 1758 na cidade de Arras. Seu pai era um advogado sem sucesso. Sua mãe, filha de um fabricante de cerveja, morreu de parto quando Robespierre tinha seis anos. Poucos meses depois da morte dela, o pai abandonou seus quatro filhos pequenos. Robespierre e seu irmão foram viver com os avós maternos. Aos 11 anos, o que não era uma idade incomum naqueles dias, Robespierre ganhou uma bolsa para a Universidade de Paris. Depois de dez anos lá, ele obteve uma licenciatura em Direito, voltou a Arras e começou a praticar a lei. No começo de 1789 ele ganhou uma eleição para representar o Terceiro Estado de Arras na Convenção. Começando como um democrata radical, tornou-se, com o desenvolvimento da revolução, mais e mais radical.
Robespierre nunca se casou. Não são conhecidos seus casos amorosos. Ele também não tinha qualquer interesse em sexo, dinheiro, culinária, artes, natureza, ou realmente qualquer coisa além de política. Ele tinha cerca de cinco pés e três polegadas de altura, com uma constituição leve, uma pequena cabeça sobre os ombros largos e cabelos castanhos claro. Ele tinha “espasmos nervosos que, ocasionalmente, torcia seu pescoço e ombros e exibia, ao apertar suas mãos, movimentos característicos e piscadelas de suas pálpebras”, diz Thompson. Vestia-se elegantemente e usava óculos “que ele tinha o hábito de empurrar para cima na testa (…) quando queria olhar alguém no rosto”. “Sua expressão habitual parecia melancolia a seus amigos e arrogância a seus inimigos. Às vezes ele ria com a imoderação de um homem com pouco senso de humor, às vezes o olhar frio se abrandava em um sorriso de doçura irônico e bastante alarmante.” Com sua voz estridente e áspero “seu poder como um orador (...) residia menos em como ele se apresentava e mais na seriedade do que ele tinha a dizer, e na profunda convicção com que ele dizia.”

Robespierre não fez segredo de suas convicções. Ele as expressou em vários discursos cruciais, cujas cópias, escritas por ele mesmo, sobreviveram. Em seu discurso de agosto 1792, Robespierre disse que a França estava vivendo um dos grandes acontecimentos da história humana. Depois de um período inicial de hesitações, a Revolução de 1789 transformou-se em agosto de 1792 “a melhor revolução que já honrou a humanidade, realmente a única com um objetivo digno do homem: basear as sociedades políticas no mínimo sobre os princípios imortais de igualdade, justiça e razão.” A Revolução era a melhor de todas porque, pela primeira vez na história, “a arte de governar” não visava “enganar e corromper o homem”, mas sim “iluminá-los e aperfeiçoá-los”. A tarefa da Revolução era “estabelecer a felicidade de, talvez, toda a raça humana”. “O povo francês parece ter-se distanciado do resto da raça humana por dois mil anos.”

Mas um sério obstáculo barrava o caminho. “Dois espíritos opostos (...) [estão] em contenda pelo domínio (...) [e] o disputam nesta grande época da história humana, para determinar para sempre os destinos do mundo. A França é o teatro deste combate terrível”. Os conflitos entre os amigos e os inimigos da Revolução “são meramente a luta entre interesses privados e o interesse geral, entre egoísmo e ambição de um lado e justiça e humanidade do outro”. Todas as escolhas políticas de então, conseqüentemente, eram escolhas entre o bem e o mal, permitindo a Robespierre demonizar seus oponentes.

Note que ao declarar como objetivo de criar uma sociedade onde “os princípios imortais de igualdade, justiça e razão” prevaleceriam, Robespierre simplesmente descartou a liberdade e a fraternidade, substituindo o que ele considerava como a justiça e a razão. A justificação dos massacres foi que os mortos eram inimigos da república, contra-revolucionários que tinham conspirado contra a igualdade, a justiça e a razão cuja realização “estabeleceriam a felicidade de, talvez, toda a raça humana.” O eixo sobre o qual tudo girava eram aqueles princípios de igualdade, justiça e razão, que Robespierre enunciou em uma declaração que formou a base da Constituição de 1793. Alguns trechos: “Artigo 1. O objeto de toda associação política é a salvaguarda dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.” “Artigo 3. (...) direitos pertencem igualmente a todos os homens, independentemente das suas diferenças físicas e morais.” “Artigo 4. Liberdade é o direito de cada homem exercer todas as suas faculdades à vontade. Sua regra é a justiça, seus limites são os direitos dos outros, a sua origem é a natureza, sua garantia é a lei.” “Artigo 6. Qualquer lei que viola os direitos imprescritíveis do homem é essencialmente injusta e tirânica.”

Como Robespierre realmente interpretou esses princípios? Ele dizia: “[Nós] devemos exterminar todos os nossos inimigos com a lei em nossas mãos”, “a Declaração dos Direitos não oferece salvaguarda para conspiradores”, “as suspeitas do patriotismo esclarecido pode oferecer um guia melhor do que as regras formais de prova”. Comentando sobre uma execução, ele disse: “Mesmo se ele era inocente, ele tinha que ser condenado se sua morte pudesse ser útil”. Em uma carta orientando o Tribunal Revolucionário, ele escreveu: “As pessoas estão sempre dizendo a juízes para tomar cuidado e salvar os inocentes, eu digo a eles (...) para evitar salvar o culpado.”

Collot, o comissário oficial que ele nomeou pessoalmente para supervisionar os massacres, expressou sucintamente uma interpretação similar dos princípios consagrados na Declaração: “Os direitos do homem não são feitos para contra-revolucionários, mas apenas para sans-culottes”.

Saint-Just, o mais próximo aliado de Robespierre, disse: “A república consiste no extermínio de tudo que se opõe a ela”.
A discrepância entre a Declaração, que fornecia a base de uma garantia constitucional de direitos iguais para todos os cidadãos, e a política ditada de fato por Robespierre e imposta por seus seguidores era tão flagrante que exigia uma explicação. Robespierre providenciou uma num discurso e, dezembro de 1793.

“O objetivo de um regime revolucionário é fundar uma república, o de um regime constitucional sustentá-la. O primeiro convém a um tempo de guerra entre a liberdade e seus inimigos. O segundo é mais apropriado a quando a liberdade for vitoriosa e em paz com o mundo” O regime vigente na França era revolucionário, argumentou, em lutar para se tornar constitucional. Mas inimigos internos ameaçavam o êxito desta luta. “Sob um regime constitucional”, ele continuou, “pouco é necessário, exceto para proteger o cidadão contra o abuso de poder por parte do governo. Mas sob um regime revolucionário o governo tem de se defender contra todas as facções que o atacassem e, nessa luta pela vida, somente bons cidadãos merecem proteção pública e a punição dos inimigos do povo é a morte”. O regime revolucionário “deve ser tão terrível para o mal como é favorável ao bem.”

Não havia, portanto, nenhuma inconsistência entre a Declaração e o Terror. “A Declaração dos Direitos não oferece nenhuma salvaguarda para conspiradores que há tempos tentam destruí-la.” A Declaração guiava o regime constitucional, cujo estabelecimento era o objetivo final. O Terror era apenas o meio para ele, uma necessidade imposta ao regime revolucionário por inimigos que impediam a realização do regime constitucional.

Esta obra prima de sofisma era, então, uma novidade, mas para aqueles que contemplam o século XX é tristemente familiar pelo uso que muitos regimes assassinos fizeram dela. Todos eles afirmaram que seu objetivo era a felicidade humana, mas que inimigos incorrigivelmente iníquos, disfarçando sua verdadeira natureza e conspirando contra o mais nobre dos objetivos, ameaçavam a sua realização. A suposta ameaça era muito grave, e o objetivo muito importante, a ponto de justificar extremas, ainda que temporárias, medidas – para identificar os inimigos, desmascarar suas conspirações e exterminá-los. Para um punhado de heróis clarividentes e corajosos da revolução – como a KGB, a SS, e a Guarda Vermelha – cabe o dever de executar estas tarefas necessárias. Eles devem endurecer o coração e fazer o que precisa ser feito no interesse do bem maior. Uma vez evitada a grave ameaça, as medidas extremas não serão mais necessárias, e a felicidade humana estará ao alcance de todos.

Uma característica notável dessa atitude mental é que aqueles sob sua influência acreditam de fato nestas justificativas para arrancar entranhas, linchar, mutilar, enterrar vivas, afogar e dilacerar suas vítimas infelizes. Na verdade, as atrocidades apenas reforçam a segurança absoluta com as quais os ideólogos abraçam suas convicções e impõem seus objetivos.

Uma ideologia é uma visão de mundo que explica as condições políticas predominantes e sugere formas de melhorá-las. Ideologias típicas incluem entre seus elementos uma visão metafísica que fornece uma visão transcendental do mundo, uma teoria sobre a natureza humana, um sistema de valores cuja realização supostamente garantirá a felicidade humana, uma explicação de por que a atual conjuntura está longe da perfeição, e um conjunto de políticas destinadas a diminuir a diferença entre o real e o ideal. Este último componente – compromisso com um programa político e sua implementação – é o que distingue ideologias de sistemas religiosos, pessoais, estéticos, ou filosóficos de crença. As ideologias visam transformar a sociedade. Outros sistemas de crenças não envolvem tal compromisso. Se envolverem, se tornam ideológicos.

Ao longo da história, muitas ideologias diferentes e incompatíveis têm prevalecido, e todas foram e são essencialmente interpretações especulativas que vão além de fatos inegáveis e verdades simples. Se baseando em hipóteses duvidosas sobre questões que transcendem o estágio atual do conhecimento, elas são particularmente propensas a um processo mental auto-ilusório, impaciente, muito esperançoso ou egocêntrico – a vôos descontrolados de fantasia e imaginação. As pessoas razoáveis, portanto, consideram as ideologias, incluindo a própria, com ceticismo saudável e exige delas conformidade com as normas elementares de razão: consistência lógica, uma explicação para fatos indiscutíveis e relevantes, a capacidade de resposta a novas provas e crítica séria, e o reconhecimento de que o sucesso ou fracasso de políticas derivadas delas serve como confirmação ou não das provas.

A fonte das convicções mais profundas de Robespierre e de sua certeza sobre elas era seu compromisso inquestionável com uma ideologia que ele tinha aprendido principalmente com Rousseau, a quem considerava “o tutor da raça humana.” Essa ideologia levou-o a acreditar que a política é uma aplicação da moralidade e que um bom governo é baseado em princípios morais que inevitavelmente levam os interesses dos indivíduos a se tornarem indistinguíveis do interesse geral. Dito de outra forma, os seres humanos não corrompidos intuitivamente reconhecem e agem no interesse geral. Qualquer divergência entre o interesse individual e o interesse geral indica a imoralidade e irracionalidade do indivíduo. Se qualquer indivíduo fracassa em ver que seus verdadeiros interesses são iguais ao interesse geral, ele deve ser forçado a agir como se tivesse visto, para seu próprio bem.
Mas quem são esses seres humanos não corrompidos que sabem o que é do interesse geral? Robespierre responde: “Existem almas puras e sensíveis. Existe uma suave, mas imperiosa e irresistível, paixão... um profundo horror da tirania, um zelo compassivo pelo oprimido, um amor sagrado por sua pátria, e um amor ainda mais sagrado e sublime pela humanidade, sem a qual uma grande revolução não é mais do que a destruição de um crime menor por um maior. Existe uma ambição generosa para fundar na terra a primeira república do mundo... Vocês podem sentir isso, neste momento, queimando em seus corações, eu posso sentir isso no meu próprio”. A mensagem clara quando a retórica bombástica é esvaziada é que, desde que as pessoas têm sido corrompidas, elas não podem ser confiáveis para saber o que é bom para elas, mas ele, Robespierre, sabe, porque ele é incorruptível.

Se ele ficado apenas nisso, sua crença em sua própria pureza não seria mais do que uma loucura atrevida de um megalomaníaco. Mas ele não ficou apenas nisso. Ele se considerou no dever de coagir a população corrompida a viver de acordo com o que ele em sua pureza considerava como virtude. Ele dizia: “Os inimigos da República são covardemente egoístas, ambiciosos e corruptos. Vocês têm expulsado os reis, mas vocês têm expulsado os vícios que a dominação fatal deles criou dentro de vocês?” Robespierre se convenceu – e coagiu os outros a acreditar ou a fingir acreditar – que sua vontade era a vontade geral, a vontade que todos agissem como se todos fossem tão puros como ele. Quando ele encontrou oposição, ele sabia com certeza absoluta que seus adversários eram ou corrompidos e tinham que ser exterminados pelo bem comum, ou ignorantes e tinham que ser coagidos para seu próprio bem a agir como se fossem tão puros e virtuosos quanto ele. A base da ideologia de Robespierre não era a razão e sim a paixão, que se tornou sua pedra de toque da razão e da moralidade. Ele não perguntou se ele deveria alimentar essa paixão, se a paixão era uma reação adequada aos fatos, se a paixão era muito forte, ou se ele deveria ser guiado por ela. O objetivo de sua política era adaptar o mundo a sua paixão, e não vice-versa. O resultado foi que se tornou cego às necessidades reais da razão e da moralidade e decretou o assassinato de milhares simplesmente por suspeitar que eles pudessem discordar de suas opiniões passionais. Enquanto tudo isso acontecia, ele hipocritamente proclamava que suas ações cruéis eram virtuosas e que ele era o campeão da razão e da moralidade.

Talvez possa ser dito, numa tentativa desajeitada de defender Robespierre, que ele sinceramente acreditava em sua ideologia e agia de boa fé. As pessoas não podem fazer mais que isso. É claro que, se essa desculpa fosse válida, serviria também para guardas da SS em campos de concentração, se eles fossem nazistas sinceros. Ou torturadores da KGB, desde que fossem comunistas dedicados. Ou terroristas islâmicos, se eles forem verdadeiros fanáticos. Mas as crenças reprováveis dos ideólogos aumentam ao invés de enfraquecer a responsabilidade por suas ações. As pessoas não devem manter crenças que levam a ações monstruosas. É o mínimo que se deve dizer em resposta a qualquer esforço para desculpar Robespierre. Se a sua ideologia o levou ao genocídio, ele não deveria tê-la seguido.

Muitas pessoas, é claro, não escolhem a ideologia que sustentam, mas a adquirem através de doutrinação. Pode ser demais exigir dessas pessoas que resistam à doutrinação, se esta for persistente e sofisticada, e se as pessoas não conhecem alternativas razoáveis. Não ser capaz de resistir à doutrinação ideológica, no entanto, é uma coisa, e cometer atrocidades em seu nome é outra completamente diferente. As pessoas têm uma escolha quando vão torturar ou assassinar. As pessoas decentes vão questionar sua ideologia se perceberem que ela as leva a cometer horrores. E se as pessoas não a questionam e cometem atrocidades, então elas devem ser com justiça consideradas responsáveis não pelo que acreditam, mas pelo que elas fazem.

Robespierre, no entanto, não foi doutrinado. Ele construiu sua ideologia por si mesmo, de suas leituras, educação, e experiências iniciais na política. Como um advogado treinado para garimpar provas e analisar as interpretações dos fatos, ele tinha habilidade para pensar criticamente sobre sua ideologia. Contudo, ele não o fez. Ele é, portanto, responsável pelos assassinatos em massa que causou. E o mesmo vale para os inúmeros comunistas, nazistas, maoístas, ou os terroristas que escolheram suas ideologias em detrimento de alternativas perfeitamente disponíveis, as quais eles não poderiam ignorar.

Mas e todos aqueles que seguiam Robespierre e que não partilhavam nem sua ideologia e nem sua paixão monstruosa? Muitos seguiram porque ele os deixava agir segundo seus piores instintos, os quais eles tinham tido que reprimir quando a lei e a ordem prevaleciam.

Outros – assustados com as mudanças políticas, com o caos generalizado e a insegurança, com o sangue que já tinha sido derramado – imploravam para entender o que estava acontecendo, o que o justificava, e qual era o seu objetivo. Muitas pessoas aceitaram a explicação de Robespierre, mesmo sendo bombástica e implausível, porque qualquer explicação para o que eles viviam era melhor do que nenhuma.

Mas a principal razão por que as pessoas o seguiram foi o medo. Ninguém estava seguro, e as pessoas ficavam ansiosas para provar com palavras e atos que eram leais e entusiasmados partidários. Robespierre exercia seu poder sobre a vida e a morte tão arbitrariamente como Hitler, Stalin e Mao. Arbitrariedade é a chave para o terror: se não há regras, justificativas, ou razões, então todo mundo está em risco. O único jeito de tentar minimizar o risco é superar os outros na adesão à norma. Ditadores entendem isso, o que explica muito das “manifestações espontâneas” e da adulação pública que extraem do povo enganado e apavorado a sua mercê.

Robespierre, que se via como um herói romântico numa luta quase desesperada, tinha sede de poder e era indiferente ao seu custo. Quando ele conseguiu inventar uma ideologia dos destroços de idéias de Rousseau e outros elementos, se agarrou a ela com dedicação fanática, pois essa ideologia o proporcionou não apenas um programa político, mas também com uma justificação da sua busca pelo poder. Quando os membros de seu círculo fechado e anormal cometeram os atos monstruosos do Terror, ele tomou a monstruosidade como prova da pureza de suas motivações e convicções. Robespierre e seus companheiros ideólogos eram os eleitos guiados por paixões para conhecer o bem e o mal, a verdade e a mentira, mesmo que suas ações possam parecer obscenas ou inadmissíveis para os não eleitos.

Embora o nazismo, o comunismo, vários tipos de terrorismo, e os racismos branco, negro ou amarelo demonstrem quão facilmente as ideologias levam a desumanidade, é claro que nem mesmo as ideologias mais irracionais e imorais conduzem necessariamente a genocídios. Ideólogos devem ter a oportunidade de agir de acordo com suas crenças – oportunidades que surgem a partir da combinação de ressentimento profundo e generalizado sobre o fardo que as pessoas devem carregar, um governo fraco ou enfraquecido, e a falta de perspectivas de melhora rápida e substancial. Foi a presença destas condições que permitiu a Robespierre se tornar o monstro que foi.

Condenar Robespierre mais de 200 anos depois de sua morte teria pouco sentido se ele não fosse uma amostra do sistema psíquico ideológico que hoje em dia nos é muito familiar. Se nós o entendermos, entenderemos também que é totalmente inútil apelar à razão e à moralidade quando tivermos que tratar com ideólogos. Pois eles estão convencidos de que a razão e a moralidade estão com eles e que seus inimigos são irracionais e imorais, apenas por serem inimigos. Negociações com essas pessoas só podem ter êxito se tivermos uma força esmagadora do nosso lado e nos mostrarmos determinados a usá-la. Uma justificativa do uso da força para o eleitorado de um país democrático – acostumado a pensar a política como um processo de negociação e de compromisso razoável – deve incluir a exposição com detalhes doentios das monstruosidades cometidas em nome da ideologia. E é por isso que faz sentido nos lembrarmos dos crimes do há muito tempo morto Robespierre.


Notas do tradutor:
[1] O tradutor sugere como leitura complementar desse artigo dois outros, de Olavo de Carvalho: A Mentalidade Revolucionária e Ainda a Mentalidade Revolucionária.
[2] No original a expressão é “Kangaroo court”.



John Kekes
 é PhD em filosofia pela Australian National University e professor emérito de filosofia da Universidade de Albany.

Tradução: Jorge Nobre, estudante de Letras - Tradução Francês da UnB.


Publicado originalmente na FrontPage Magazine



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