segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Crônica de Damasco



Damasco
Quais fatos podem ser distorcidos e ocultados de milhões de pessoas quando a Fraternidade Islâmica empreende uma guerra contando com o apoio de toda a imprensa ocidental?

Os políticos ocidentais têm uma ideia errada acerca da “Primavera Árabe” síria. Há pouca ou nenhuma oposição liberal e progressiva; o próprio ELS resulta da união de diferentes grupos milicianos, incluindo marginais, mercenários e jihadistas.
De acordo com a comunicação social ocidental, a Síria encontra-se em plena “guerra civil”. Grupos como o Observatório dos Direitos Humanos da Síria, sedeado em Londres, disseminam afirmações extravagantes acerca de um número desmesurado de vítimas (afirmam já terem morrido cerca de 20 mil pessoas) às mãos das forças de segurança do Estado sírio. Aos jornalistas independentes, dizem, é vedada a entrada na Síria e o regime não permite o exercício de uma imprensa livre.
Com base em tais relatos os visitantes esperam deparar-se com um país em estado de choque, paralisado pela guerra, completamente destruído. Mas quando cheguei a Damasco a 12 de Julho com um visto de jornalista como repórter da ZUERST! não testemunhei nenhuma dessas cenas. Fui de Beirute para Damasco por via terrestre, embora muitas pessoas me tivessem avisado que tal não era seguro, pois os rebeldes do Exército Livre Sírio (ELS) afirmavam controlar cerca de 85% do território. Mas quando cruzei a fronteira do Líbano para a Síria, deparei-me com o habitual tráfego fronteiriço  – nenhuma fuga em massa de refugiados, nada de pânico, nenhum combate à vista. A estrada até Damasco tinha várias operações stop do exército sírio, mas encontrava-se calma e segura.
Encontrei Damasco plácida e serena, o dia-a-dia normal. Fiquei no centro da cidade, no quarteirão de al-Bahsa. As lojas estavam abertas e havia pessoas e carros nas ruas. Nas paredes, os rostos do presidente Bashar al-Assad e do seu pai, Hafez, observavam a vida na capital – umas vezes com ar afável, outras com ar sério, por vezes em roupa civil, noutras de uniforme e ainda noutras envergando óculos de sol.
Tinha lido acerca da operação de invasão da capital em curso pelo ELS, mas não havia quaisquer sinais de guerra nas ruas de Damasco. Passeei pela cidade, falando com comerciantes, taxistas, pessoas da rua, polícias, mulheres tanto com lenços quanto com roupa ocidental. A resposta foi sempre a mesma – a imprensa internacional está a distorcer completamente os acontecimentos. A Al-Jazeera, sediada no Qatar, foi particularmente criticada.
A 16 de Julho, desloquei-me à antiga aldeia cristã de Maalula, a cerca de uma hora de Damasco. Os habitantes de Maalula descendem das tribos semitas que habitaram o deserto sírio e parte da Mesopotâmia há catorze séculos. O mosteiro de Mar Sarkis foi construído sobre as ruínas de um templo pagão. Sua arquitetura bizantina contém um dos poucos altares cristãos originais. Contém também uma coleção única de ícones religiosos dos séculos XVII e XVIII. Trata-se de um dos poucos locais onde ainda podemos encontrar quem fale aramaico, a língua falada por Jesus.
Novamente, a estrada era segura. Havia muitos autocarros nas ruas, cujos destinos eram Hama, Homs e Aleppo. Entrevistei os habitantes do mosteiro ortodoxo grego de Mar Tekla, os peregrinos cristãos árabes e outros visitantes. Todos partilhavam a opinião de que o presidente Bashar tirará o país da crise e que os muçulmanos e os cristãos sírios poderão conviver pacificamente. Uma freira disse-me que “esta cidade e a sua igreja foram fundadas nos rochedos da Síria. Simbolizam a estabilidade e o poder da Síria. Vamos sair desta crise.”
A Síria é uma sociedade multiconfessional e os cristãos constituem 10% da população. A cidade de Aleppo é a maior no número de cristãos que alberga. Os cristãos estão presentes em todos os aspectos da vida síria –  economia, meio acadêmico, ciência, engenharia, artes, entretenimento e na arena política. Alguns são oficiais das Forças Armadas. Preferiram misturar-se com os muçulmanos em vez de criaram unidades e brigadas cristãs à parte, e como tal combateram lado a lado com os seus compatriotas muçulmanos contra as forças israelitas em vários conflitos.
Regressei a Damasco pela cidade de al Tel, ocupada brevemente pelo ELS até à  recuperação desta por parte do exército. Ainda se notam os vestígios das forças rebeldes e dos seus apoiantes – ou seja, os graffitinas paredes a comemorar não a liberdade ou a democracia, mas os pregadores islâmicos mais extremistas. Também se viam ameaças pintadas nas lojas – “Façam greve ou ardam!” – num esforço para coagir os comerciantes a fazerem greve de modo a pressionar o governo. Os políticos ocidentais têm uma ideia errada acerca da “Primavera Árabe” síria. Há pouca ou nenhuma oposição liberal e progressiva; o próprio ELS resulta da união de diferentes grupos milicianos, incluindo marginais, mercenários e jihadistas.
A 15 de Julho os rebeldes lançaram aquilo a que chamaram “Vulcão de Damasco”, o seu assalto militar à capital, afirmando ser uma operação decisiva. Mas em al-Bahsa só dei conta de se encontrarem alguns helicópteros a sobrevoar alguns dos subúrbios, e a ocasional explosão, a cerca de cinco quilômetros de onde me encontrava. Continuava o dia-a-dia nas ruas, pese embora os relatos da imprensa ocidental acerca do inferno em que se encontrava a capital. Na maior parte da cidade a única coisa que estava a queimar eram os cachimbos dos clientes dos cafés. A guerra estava confinada a poucas zonas, como Al-Midan. As explosões duraram algumas horas, pararam e recomeçaram. O centro da cidade encheu-se com os residentes das zonas afetadas, e à noite os soldados dos pontos de controle pediram-me o passaporte. Fora isso, não havia qualquer sinal de conflito.
Tal alterou-se na quarta-feira de 18 de Julho, quando uma bomba vitimou vários membros do governo e chefes dos serviços de segurança durante uma reunião ministerial. Faleceram o ministro da Defesa, o general Dawoud Rajiha – Assef Shawkat, cunhado do presidente e secretário de Estado da Defesa – o general Hasan Turkmani, assistente do vice-presidente, e Hafez Makhlouf, chefe da seção de investigações dos serviços secretos. Encontrava-se na sede da televisão estatal quando ouvi as notícias. Estavam todos em choque, e algumas funcionárias não conseguiram conter as lágrimas. Entretanto, Bruxelas e Washington regozijaram-se com os assassinatos enquanto os islamistas dançavam nas ruas de Tripoli.
Entretanto, continuava a “batalha de Damasco”.
Passados quatro dias já toda a gente se tinha habituado ao som das bombas e dos helicópteros. Aproveitei e visitei o hospital militar de Damasco, no qual falecem uma média de quinze soldados por dia, vítimas dos seus ferimentos – cerca de 450 soldados por mês, isto só em Damasco. Entrevistei vários soldados feridos, falei com as suas famílias e os seus médicos.
Recordo particularmente a entrevista que fiz a um capitão de 34 anos do exército que teve a sorte de sobreviver a um ataque rebelde. A sua unidade tinha sido encurralada pelos rebeldes, que os alvejaram com granadas de rocket e metralhadoras de alto calibre. Um par dos seus camaradas morreu durante o ataque, foi ferido mas sobreviveu à primeira vaga. Mesmo ferido e prostrado manteve o fogo. Quando o vieram salvar ficaram também sob o fogo dos rebeldes. Acabaram por o levar para a segurança de um edifício, mas só passadas algumas horas é que conseguiram sair. Quando chegou ao hospital tinha perdido tanto sangue que se encontrava quase inconsciente.
“Pedi aos meus camaradas que me matassem antes de ser capturado pelo inimigo.”
Perguntei-lhe porquê, a sua resposta perturbou-me: “torturam-nos até à morte, cortam-nos as mãos e as gargantas caso nos apanhem vivos.”
Partia do pressuposto de que os rebeldes não eram sírios, mas oriundos de muitos países, principalmente da Líbia, dos Estados do Golfo, do Iraque, Afeganistão e Paquistão – jihadistas e mercenários que matam por petrodólares. Andes de sair do hospital mostrou-me uma foto das suas duas filhas e disse-me fervorosamente que estava a lutar pela liberdade delas.
O diretor do hospital mostrou-me onde tinha aterrado uma granada de morteiro disparada no dia anterior, que felizmente não explodira. Também havia buracos de balas nas paredes. Os rebeldes atacaram o hospital várias vezes, mas a ONU, a Anistia Internacional ou a Human Rights Watch pareceram não ter interesse nestas violações das convenções de guerra.
À medida que os combates continuaram, toda a cidade se tornou enervada. Os comerciantes começaram a fechar as lojas ao princípio da tarde; queriam certificar-se de que voltavam para as suas famílias. Alguns levavam o dinheiro e os objetos de valor consigo. Temiam que as lojas fossem pilhadas – pelos rebeldes, não pelo Exército – caso os combates chegassem ao centro da cidade.
Na sexta-feira de 20 de Julho, enquanto estações pró-rebeldes como a Al-Jazeera e a Al-Arabia emitiam histórias acerca da guerra sem quartel na capital, eu ouvia os pássaros a cantar nos lindos parques da cidade e observava enquanto os damascenos desfrutavam o seu fim-de-semana. Até as explosões nos subúrbios tinham parado. A emissora estatal noticiou que o ataque rebelde tinha sido repelido e que as forças de segurança se encontravam a limpar os subúrbios dos rebeldes que sobravam.
Desconfiei se seria verdade ou mera propaganda estatal. Decidi ir a Al-Midan, onde os combates tinham sido mais intensos. Havia muitos soldados e veículos militares no centro da zona. O oficial responsável da esquadra de polícia principal recebeu-me e mostrou-me os arredores. Ainda havia tiroteios a cerca de 500 metros, e ouvi o som de uma metralhadora de alto calibre. Levaram-me num veículo blindado à zona de combate, no limiar de Al-Midan. Havia traços da guerra em todo o lado. Os soldados disparavam protegidos contra um edifício onde se encontravam atiradores furtivos. Tivemos que nos movimentar rapidamente de casa para casa, algumas das quais ainda a fumegar. Os cadáveres dos rebeldes ainda estavam nas ruas. O rosto de pelo menos um deles era notoriamente não-arábico; parecia ter vindo do Afeganistão. Questionei-me sobre quem lhe teria pago a viagem, e porque razão estaria mesmo ele a combater.
Enquanto ainda estávamos a ver os cadáveres, chegou um veículo carregado com o equipamento e as armas dos rebeldes. O condutor mostrou-me o que tinham encontrado no centro de controle do ELS: enormes quantidades de munições, armas automáticas, metralhadoras e uniformes do Exército sírio, utilizados para desacreditar o Estado e confundir os civis. Duvidei se isto não seria uma encenação destinada aos jornalistas ocidentais: teria o Exército preparado um cenário para a minha visita? Contudo, quando cheguei, o combate ainda estava a decorrer, e ninguém teria tido tempo para “preparar” os cadáveres; a área estava “fresca”. Acredito que o que testemunhei era autêntico.
Encontrei-me com o porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros, o Dr. Jihad Makdissi, no dia em que este teve que lidar com aquilo que a Al-Jazeera apodara de “Massacre de Trimseh”. Esta afirmava que o regime tinha chacinado mais de 200 civis nessa aldeia, mas mais tarde soube-se ter sido um combate entre o Exército e o ELS. O Dr. Makdissi, que estuou no Reino Unido e fala fluentemente o inglês, repetiu pacientemente, uma e outra vez, nas conferências de imprensa os fatos – as forças de segurança tinham abatido 37 rebeldes e dois civis num ataque à vila que os rebeldes estavam a utilizar como base para lançarem ataques a outras áreas. Sustentou que ao contrário do que a Al-Jazeera afirmava, as forças governamentais não tinham utilizado aviões, helicópteros, tanques ou artilharia e que as armas mais pesadas utilizadas tinham sido rockets atiradores de granadas
Abandonei Damasco a 21 de Julho, dirigindo-me para o Líbano. Planejei ir novamente de carro. Vários sírios alertaram-me de que seria uma viagem perigosa e de que a fronteira com o Líbano estaria repleta de refugiados. Mas quando perguntei onde tinham obtido tais “informações” mencionaram sempre a Al-Jazeera e a Al-Arabia. Então, embora me sentisse apreensivo, confesso-o, decidi ir ver por mim mesmo. Mas eis que a estrada para a fronteira estava calma, sem muito trânsito. O meu passaporte foi examinado em vários postos de controle, e foi só. No posto fronteiriço havia realmente muitas pessoas, mas não se tratava de um caos, nem de uma massa de refugiados. A saída do país não demorou mais de 20 minutos.
A última surpresa ocorreu no lado libanês da fronteira. Ali vi pela primeira vez a bandeira rebelde verde, branca e negra. Logo à saída do posto fronteiriço libanês estavam uma dúzia de equipes de televisão ocidentais, à  espera de “refugiados”. Algumas delas estavam a pagar aos entrevistados em dólares por entrevistas curtas; e quanto mais selvagem a história, mais pareciam gostar dela. Aparentemente a realidade não é  de grande importância quando a comunicação social ocidental menciona a Síria.

ManuelManuel Ochsenreiter, ex-redator do semanário Junge Freiheit, é o atual chefe de redação da revista Zuerst!, ambos da Alemanha.






Tradução e divulgação: Geopol


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