quarta-feira, 20 de junho de 2012

A MORTE DE JK: COMO UMA MENTIRA É FORJADA


 Colaboração do site www.averdadesufocada.com para a Comissão da Verdade .
Se querem a verdade,  procurem  notícias da época. Assim não perderam tempo nem dinheiro
O local antes da morte de JK  já era conhecido como "Curva da Morte" ou  como " Curva do Açougue".
Abaixo leiam 
 o que foi publicado em uma Edição Extra da Revista Veja- 25/08/1976
Brasil diz seu adeus a JK  
A notícia se espalhou domingo à noite. Na segunda, no Rio e em Brasília, o povo carregou nos ombros o corpo de seu ex-presidente
No dia 14 deste mês, um sábado, os inevitáveis rumores de agosto fizeram mais uma vítima: segundo informações procedentes de Belo Horizonte, o ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira teria falecido em sua fazenda no município goiano de Luziânia, próximo ao Distrito Federal.
Texto completo
Poucas horas depois, enquanto os ecos da falsa notícia começavam a comover o país, repórteres prontamente despachados por intrigados jornais cariocas encontraram Kubitschek placidamente aboletado na sala da casa da fazenda com amigos e familiares, degustando uma dose de uísque e assistindo pela televisão ao seriado "O Homem de Seis Milhões de Dólares".
Cientificado dos rumores belo-horizontinos, Kubitschek abriu seu largo sorriso e comentou: "Então, agora sou eu? Um dia, desses vocês quase mataram o Jânio e agora estão querendo me pegar. Mas não vão conseguir nada, não". Depois, sorrindo sempre, o ex-presidente convidou os recém-chegados para um brinde: "A ocasião merece, não é? Afinal, eu acabei de ressuscitar". Ao se despedir dos repórteres, embora ressalvando que "tudo pode mudar", ele procurou descartar também os rumores que davam conta de seu iminente retorno à vida pública. "Minhas únicas pretensões no momento são plantar pasto e café", explicou.
Horas mais tarde, em meio a uma permanente saraivada de telefonemas de amigos alarmados com os boatos, Kubitschek confidenciou a Vera Brant, de Brasília, uma amiga da família há muitos anos: "É, vai ser assim mesmo no dia em que eu morrer. Mas, 24 horas depois, ninguém vai se lembrar mais de mim". Vera retrucou com um profético protesto: "Aí é que está o seu engano: ninguém esquecerá você". Oito dias depois, novamente a notícia do falecimento de Juscelino Kubitschek de Oliveira, um dos quatro ex-presidentes vivos do país, comoveria todo o Brasil. Desta vez, porém, não eram rumores.
CONTRA OS RADICAIS - Entre o brinde de Luziânia e a fatídica viagem pela rodovia Presidente Dutra no dia 22, Kubitschek procurou viver coerentemente sua nova condição de entusiasmado proprietário rural. Na sexta-feira passada, no aeroporto de Brasília, enquanto aguardava o momento de embarcar para São Paulo, ele reviu dois amigos, o senador Franco Montoro e o deputado Ulysses Guimarães, presidente nacional do MDB. Juntos fizeram a viagem de jato - e mais uma vez JK, que no dia 12 de setembro completaria 74 anos de idade, pôde desfiar alguns dos seus projetos. "Juscelino queria comprar gado e estava cheio de planos para sua fazenda de 300 alqueires no cerrado", conta Guimarães. "Ele já tinha plantado pastagens, 5.000 pés de café e pretendia plantar mais 50.000."
Mas, durante a viagem até o Aeroporto de Viracopos, de onde os três seguiriam juntos para São Paulo, Kubitschek acabou demonstrando que, apesar de seu longo, involuntário retiro político, ainda o assaltavam preocupações e conceitos rigorosamente atuais. "Hoje está cada vez mais clara a necessidade de normalização da ordem pública", disse ele a Guimarães. "Isso é um desejo de todo o povo brasileiro, à exceção de uns poucos radicais de direita e de esquerda. Passados doze anos, esse sentimento é cada vez mais amplo." Segundo Montoro, ele atribuiu as recentes bombas terroristas "ao desespero de elementos inconformados com a perspectiva de normalização institucional". Kubitschek ainda revelou ter notado "certa inquietação" nos meios econômicos e bancários, com os quais estreitara seus contatos nos últimos tempos.
Ele fez algumas queixas, também. Confessou, por exemplo, que gostaria de reencontrar seus arquivos, doados ao governo em 1964 e depois apreendidos pela polícia. E lamentou as vicissitudes que precederam o lançamento de seu livro "Meu Caminho para Brasília" - liberado com a exigência de que não houvesse noites de autógrafos. Apesar disso, Kubitschek tencionava escrever outro livro, desta vez descrevendo seu tempo de exílio. E parecia extremamente bem disposto ao chegar à Casa de Manchete, entre as árvores frondosas do Jardim América, onde ficaria hospedado em São Paulo, a convite do editor Adolfo Bloch.
ABRAÇOS NAS RUAS - Kubitschek e Bloch jantaram juntos numa churrascaria e, ainda nessa noite, o ex-presidente aceitou convite para proferir uma palestra no Colégio I. L. Peretz no dia 29 de novembro, durante as solenidades evocativas da partilha da Palestina. Na manhã seguinte, em companhia do amigo Olavo Drummond, ex-deputado federal pelo PSD mineiro e procurador da República em São Paulo, Kubitschek percorreu várias livrarias paulistanas. "Nas ruas, ele foi muito cumprimentado e abraçado por pessoas que o reconheciam", testemunha Drummond.
Às 11 horas do sábado, Kubitschek acompanhou Bloch ao Aeroporto de Congonhas, de onde o editor voltava para o Rio. E, depois da sesta habitual, ele retocou o discurso de 3 minutos que faria à noite, no Clube Nacional, discretamente cravado no bairro do Pacaembu. Ali, num jantar para cinqüenta talheres, reuniam-se componentes da extinta Comissão da Bacia Paraná-Uruguai, criada quando Kubitschek era governador de Minas Gerais. Sóbrio, elegante em seu terno e pulôver azul-marinhos, camisa branca e gravata azulada, Kubitschek reafirmou sua obstinada crença no desenvolvimento com liberdade e foi aplaudido por um punhado de ilustres convivas - entre eles os ex-governadores paulistas Lucas Nogueira Garcez, Carvalho Pinto e Laudo Natel - e encerrou sua noite no restaurante Paddock, no centro da cidade, ao lado do inseparável Drummond.
Na manhã de domingo, Kubitschek acordou especialmente bem-humorado. Leu jornais, recortou alguns artigos e reportagens, e fez questão de acompanhar, na cozinha da Casa de Manchete, a preparação do "excelente filé" que já lhe fora servido no dia anterior. Em seguida, saiu com Drummond para rever amigos. Almoçaram na residência de um deles, onde o ex-presidente se emocionou por reencontrar seu afilhado Adhemar de Barros Neto, de 14 anos. "Ele estava ótimo de saúde, corado, bonito e conversando muito", recorda Drummond. "E me disse que pretendia viajar para Brasília de avião."
Por alguma razão desconhecida, porém, Kubitschek mudou de idéia - e, em vez de voltar a Brasília de avião, decidiu ir para o Rio de automóvel. Assim, terminado o almoço, um carro da revista Manchete o levou ao trevo do quilômetro 2 da via Dutra. Ali o esperava o motorista e secretário Geraldo Ribeiro, 63 anos, ex-chefe da garagem do Palácio do Catete e seu amigo há mais de quarenta anos, a bordo de seu próprio carro, um Opala cinza-metálico com teto de vinil, ano 1970, placa NW-9326 do Rio de Janeiro. Fiel a antigos hábitos, Kubitschek se acomodou no banco traseiro, descalçou os sapatos, abriu um saquinho de biscoitos de polvilho - e, em companhia do velho amigo Ribeiro, partiu para a sua última viagem.
"CURVA DO AÇOUGUE" - O trecho da via Dutra que vai do quilômetro 177 ao 164, no sentido São Paulo-Rio, é sintomaticamente conhecido por "curva do açougue" entre experientes motoristas de caminhão. Há duas curvas para a esquerda e, em seguida, um acentuado declive para a direita. E justamente ali, por algum imperdoável equivoco de engenharia, a pista se inclina ligeiramente para a esquerda. "Os carros que trafegam no sentido do Rio são invariavelmente atraídos para o lado de dentro da pista e podem capotar ou pegar a contramão", diz o investigador Manuel Geraldo, da delegacia de polícia de Resende, no Estado do Rio.
Habituado às tragédias rodoviárias que celebrizaram esse trecho - o qual, por ter sido recapeado recentemente, ainda não dispõe de faixas de segurança -, Manuel Geraldo não pareceu especialmente impressionado quando soube, no começo da noite de domingo, que a estrada acabara de fazer mais duas vítimas fatais. A informação dizia que às 17h55, depois de ter sido fechado por um ônibus, um Opala havia se desgovernado, atravessando o canteiro central a mais de 100 quilômetros por hora e colidido violentamente com um caminhão Scania Vabis de Orleans, Santa Catarina, placa ZR-0938, dirigido a 80 quilômetros horários por Ladislau Borges, 47 anos. Dentro do automóvel, jaziam dois corpos irreconhecíveis.
"Fiz o que pude, mas não consegui desviar", diria depois Borges, que fazia a rota Ceará-São Paulo transportando 30 toneladas de gesso numa carreta de doze rodas acoplada ao caminhão. Ele acabara de ouvir pelo rádio da cabina o primeiro tempo do jogo Vasco e Botafogo, no Maracanã, quando percebeu que o Opala ultrapassava o canteiro e vinha em sua direção. "Joguei a carreta para a direita e percebi que o motorista tentava controlar o carro para entrar entre o caminhão e o canteiro", recorda Borges. "Mas não foi possível evitar o choque." O Opala colidiu com a roda dianteira direita da carreta e foi arrastado por cerca de 40 metros até um capinzal às margens da rodovia. Com o impacto, o pesado caminhão ficou parcialmente fora da pista. Borges, por sorte, não sofreu ferimentos graves - mas pouco depois seria confrontado com a tragédia.
CHORO E CONGESTIONAMENTO - Os efeitos do impacto foram terrivelmente mais destruidores sobre o lado esquerdo do Opala - justamente o lugar em que Kubitschek estava sentado, com as pernas cruzadas. Dezenas de motoristas que vinham mais atrás estacionaram seus veículos nos acostamentos, retiraram Borges da cabina, mas nada puderam fazer quanto aos dois corpos presos nas ferragens. Ribeiro parecia enrijecido ao volante, o que alimentou suspeitas de que ele talvez tenha sofrido um ataque cardíaco ao tentar evitar o desastre. E o passageiro do banco de trás, irreconhecível, só pôde ser identificado pelos documentos encontrados em seu paletó.
O natural choque da morte seria, então, brutalmente ampliado: a carteira de identidade nº 1.633.333, expedida pelo Instituto Félix Pacheco, informava que o morto era Juscelino Kubitschek de Oliveira. Além dela, o ex-presidente portava a carteira de sócio de um clube e uma passagem aérea em seu nome para o vôo das 18 horas do dia 20 entre Brasília e Rio. Aturdidos pela descoberta, muitos motoristas choravam copiosamente. E logo se formou um imenso congestionamento em ambas as pistas da via Dutra, que só ensaiariam um lento retorno à normalidade às 21 horas do domingo, quando os corpos foram finalmente retirados das ferragens por bombeiros e patrulheiros rodoviários, e levados para o necrotério de Resende.
Às 20 horas, o delegado Valdir Guilherme já havia anunciado a identidade dos mortos. Informada em seu apartamento no Rio, a esposa do ex-presidente, dona Sara Kubitschek, recusava-se a acreditar na notícia. "É a segunda vez que dizem isso", insistia. De qualquer forma, logo seguiria para Resende a secretária da família Kubitschek, Edna Andrade Couto. Foi ela quem providenciou o traslado para o Rio, feito por uma Kombi do serviço funerário de Resende, seguida por numerosos veículos de amigos do ex-presidente.
Às 2h45 de segunda-feira, o corpo de JK chegou ao Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, em cujas imediações, mantidas a distância por quarenta soldados da Polícia Militar, cerca de 200 pessoas esperavam. Enquanto isso, já informada oficialmente do falecimento pelo secretário da Segurança do Rio, general Ignacio Domingues, dona Sara abria a porta de seu apartamento aos jornalistas e fazia um único pedido: "Não me fotografem, pelo amor de Deus".
CALMANTES - "Ele era tão bom companheiro. Agora estou sozinha." Dona Francisca, cozinheira de Kubitschek desde que ele deixou a presidência, ouviu a frase da patroa e chorou com ela. A essa altura, o apartamento dos Kubitschek, em Copacabana, já começava a receber amigos, parentes e ex-assessores de JK. Por volta de meia-noite e meia chegava Maristela, a filha adotiva do ex-presidente, em companhia do marido Rodrigo, filho do ex-ministro Lucas Lopes. Em prantos, explicava que soubera da notícia pouco antes, num sítio de Araras, onde passava o fim de semana. Márcia, a outra filha, só abraçaria a mãe às 4 da manhã, ao regressar às pressas de Porto Alegre.
Já vestida de negro e sob efeito de calmantes, ministrados por dr. Aluísio Salles, médico e amigo da família, dona Sara recebia então os cumprimentos de Abelardo Jurema, líder de JK na Câmara dos Deputados, Fernando Nóbrega, ex-ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, o escritor Josué Montello, e Paschoal Carlos Magno, ex-assessor especial para assuntos culturais e estudantis, que chorava copiosamente. "Foi o único homem público que respeitou os direitos da mocidade brasileira", repetia Magno.
Também se chorava muito a 764 quilômetros dali, nas ruas de Diamantina (MG). Na terra natal de "Nonô", fecharam-se lojas, bares e escolas - inclusive a faculdade de Odontologia, que Kubitschek fundou há 23 anos, quando governador de Minas. Seus conterrâneos relembravam com saudade a última visita do filho ilustre, em janeiro último. Todas as tardes, subia ele até um cruzeiro fincado no alto de uma das montanhas que cercam a cidade e de lá, silencioso, contemplava o espetáculo do pôr-do-sol.
AMIGO DOS MOTORISTAS - No Rio, a manhã de segunda-feira começava a nascer quando o Instituto Médico Legal deu por terminada a autópsia do ex-presidente. Pouco depois das 6 horas, todo coberto de pétalas de rosas e cravos vermelhos, o corpo de Kubitschek chegava à sede da revista Manchete, na praia do Russel, onde seria velado. E ali começaria o que foi a maior homenagem popular já prestada pelo Rio de Janeiro, nos últimos vinte anos, a qualquer figura política brasileira. Logo se formou uma fila de centenas de metros de extensão, que esperava pacientemente sua vez de entrar no saguão do prédio - quem entrava não queria sair. Algumas pessoas gritavam, a maioria chorava. E explosões de afeto se sucediam umas após as outras.
De repente, por exemplo, uma voz se ergueu, enérgica: "Depressa, queremos ver nosso amigo, o amigo dos motoristas". Quem gritava, entre soluços, era um homem alto, forte, de óculos. Levado para junto do corpo, discursou: "Que Santo Pai e Nossa Senhora de Fátima lhe dêem o reino dos céus. Tudo de bom para você, Juscelino. Descanse em paz, meu presidente". Minutos depois, mais calmo, o homem se identificava - José Gomes, "um simples motorista", pioneiro de Brasília, a quem JK abraçou um dia, "apesar de eu estar todo sujo".
Também na fila, esperando sua vez, uma procissão de notáveis: o arquiteto Oscar Niemeyer, o urbanista Lúcio Costa, os marechais Odylo Denis e Cordeiro de Farias, o ministro Nascimento Silva, da Previdência Social, o governador carioca Faria Lima, o prefeito Marcos Tamoyo, o historiador Hélio Silva, os ex-governadores Chagas Freitas, Carlos Lacerda e Negrão de Lima. Às 11h45, após vencer uma barreira humana firmemente disposta a não dar passagem, conseguiu-se afinal levar o caixão para a rua. Mas não para o carro fúnebre - a multidão fez questão de carregar o corpo. E nos ombros do povo, a urna do ex-presidente percorreu, em uma hora e 5 minutos, os 2 quilômetros que separam o local do velório do Aeroporto Santos Dumont.
LENÇOS BRANCOS - À frente do cortejo, amparada pelas duas filhas, dona Sara mostrava-se plácida. A certa altura da caminhada, contudo, sentiu-se mal e precisou tomar água mineral para prosseguir. À sua volta, das calçadas e das janelas ao longo do aterro do Flamengo, lenços brancos se agitavam. E a massa do cortejo, a cada quarteirão mais volumosa, cantava - o Hino Nacional, o Hino à Bandeira, a "Valsa do Adeus" e, com especial pungência, os versos do "Peixe Vivo": "Como poderei viver / Como poderei viver / Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia..."
No aterro do Flamengo, alguns soldados montavam as arquibancadas para o desfile de 7 de Setembro. Da multidão, que naquela hora entoava o Hino Nacional, subiram alguns apelos apaixonados: "Tirem o chapéu", gritava-se. Os pedidos foram prontamente atendidos. Às 12h50 o féretro chegou ao aeroporto e só então, colocada não se sabe por quem, uma bandeira do Brasil cobriu o caixão. A multidão queria entrar na pista, pretensão vigorosamente impedida pela polícia. De qualquer forma, continuavam os gritos de despedida. "Este foi o brasileiro maior." Ou: "Como este, não vamos ter nunca mais".
Na pista, três táxis aéreos aguardavam a família Kubitschek e o corpo do ex-presidente para levá-los ao Aeroporto do Galeão, de onde seguiriam, num Boeing 727 da Varig, para Brasília. Quando os familiares já se dirigiam aos aviões, um auxiliar de dona Sara tentou alcançá-los, argumentando que precisava levar as lentes de contato da ex-primeira dama. O guarda que barrava sua entrada pegou então as lentes para conferir. Desastradamente, elas caíram no chão e se perderam. Antes de entrar no Boeing, enfim, dona Sara virou-se várias vezes para a multidão que de longe não parava de gritar, acenar e cantar, e ergueu o braço em agradecimento. Dizia: "Muito obrigada por tudo isso. Muito obrigada por essa manifestação".
MOTOQUEIROS - Tensa, conduzida por amigos até as escadas do jato particular, dona Sara, acompanhada das filhas Márcia e Maristela, embarcava para uma viagem carregada de significação: ia levar o corpo de seu marido até a cidade que ele criara, Brasília. Ali, na sua capital, eleita por ele como última morada, se repetiria, dezenas de vezes ampliada, a formidável cena de adeus dos brasileiros a JK. Desde cedo, pessoas se dirigiam ao aeroporto que, até às 16 horas, quando o Boeing chegou a Brasília, já havia servido 2.420 cafezinhos e esgotado todos os refrigerantes de seu bar e do restaurante. Os balcões das companhias aéreas estavam vazios - simplesmente, todos os funcionários tinham ido para a pista. Do lado de fora, centenas de táxis puseram-se em fila atrás da Kombi que levaria o corpo de JK até a Catedral.
Com eles, um bando incontável de motoqueiros e uma faixa: "Ao querido presidente Juscelino, nossa eterna gratidão". No estacionamento superlotado, dezenas de carros tinham fitas negras amarradas nas antenas. O cortejo assim formado rumaria então para a Catedral de Brasília, onde desde cedo também crescia a multidão. A cada instante, espontaneamente, surgia um padre oferecendo-se para rezar a missa fúnebre. Já pelas 11 da manhã, o volume de presentes à catedral era suficiente para exigir o envio de policiais. Mas, na alma brasiliense em luto, não haveria lugar para barreiras nem para os naturais choques entre populares e o policiamento - como se verificaria por todo o resto do dia. Diante dos cordões de isolamento, os argumentos de quem queria passar se revelaram sempre mais fortes.
O ex-deputado federal Sílvio Braga, por exemplo, exibiu como senha sua condição de político cassado, subitamente valorizada. "Sou um ex-deputado, cassado pela Revolução", anunciou-se ele a um guarda perplexo, "vim aqui para prestar minha última homenagem ao ex-presidente". E passou: Pelas 15 horas, a igreja recebia as primeiras coroas de flores, depositadas inicialmente sobre o catafalco junto ao altar e, mais tarde, alinhadas sobre o tapete central, que ficou totalmente coberto. Essas mesmas flores, quando o caixão já estava no altar, seriam tiradas das coroas e jogadas até o grupo que rodeava o corpo de JK.
Nesse grupo, o cacique Mário, da tribo dos xavantes da reserva de São Marcos, com outros índios e uma índia grávida, que chorava, contrastava com políticos da mais pura linhagem. Estavam todos lá: Magalhães Pinto, Ulysses Guimarães, Marcos Freire, Petrônio Portella, Paulo Brossard, Fernando Lyra. Isto é, nem todos: os que se atrasaram e tentaram entrar na catedral depois do corpo não conseguiram mais atravessar a massa reunida e sempre crescente. Os populares, por seu turno, iam empurrando os que se encontravam às portas ou junto ao espelho d'água que circunda a catedral. Muitos acabaram caindo na água - e, molhados até o joelho, descobriram um dos melhores locais para observação da missa. O celebrante, entre tantos disponíveis, era justamente o mais indicado: dom José Newton, arcebispo de Brasília, com o auxílio de diversos sacerdotes.
LUTO OFICIAL - Através de milhares de rádios de pilha, a multidão se informava do que acontecia ali mesmo na igreja e em outras cidades do país. Uma das informações mais esperadas só chegaria justamente nessa hora em que todos rumavam para a catedral, ou se espremiam em seus arredores: o governo decretava luto oficial de três dias pela morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. Ainda não se sabia, entretanto, a razão do atraso. Na verdade, o próprio presidente Ernesto Geisel só foi tomar conhecimento da morte de JK na manhã de segunda-feira, segundo se presume, pela sinopse da Agência Nacional que lhe é encaminhada às 7 da manhã. "Como é que não me avisaram antes?", inquiriu contrariado o presidente, às 9h30, aos ministros Golbery do Couto e Silva, Hugo Abreu e João Paulo dos Reis Velloso, que o esperavam ao pé da rampa frontal do Palácio do Planalto, no momento em que ele chegava para o trabalho.
Não se ouviram as explicações, mas é certo que a maioria dos membros do Ministério já sabia da morte de JK desde a noite anterior - só que ninguém quis tomar a iniciativa de telefonar para o presidente, que subiria a rampa do palácio gesticulando mais do que de hábito. Iniciou-se, então, uma reunião com aqueles três ministros, conforme estava previsto na agenda - mas, fora do previsto, a eles logo se juntariam os ministros do Exército, general Sílvio Frota, e da Justiça, Armando Falcão. Passavam então de 11 da manhã e o governo, mais alguns minutos depois, anunciaria a decisão tomada diante da morte do ex-presidente.
"A decisão de luto oficial já estava tomada desde cedo", esclareceu o assessor de Imprensa da Presidência da República, Humberto Barreto. "Não importa", insistiu ele, "se o decreto foi assinado uma ou duas horas depois." As cópias do decreto, de qualquer modo, só chegaram à Sala de Imprensa às 14h30. Os repórteres comunicaram a Barreto todas as dúvidas durante a espera, falando desde o precedente aberto - afinal, dos três ex-presidentes agora vivos, dois foram cassados pela Revolução (João Goulart e Jânio Quadros) - até o fato de o último dia de luto coincidir com as festividades do Dia do Soldado.
Segundo admitiu Humberto Barreto, a coincidência, realmente, foi discutida. Ao mesmo tempo, lembrava-se a ausência de membros do governo na catedral. No final da tarde, em substituição ao ministro Falcão - ocupado com obrigações ligadas à reforma do Judiciário, explicou -, Humberto Barreto voltaria a falar sobre a homenagem oficial. O governo não mandaria representante aos funerais, informou então. "A homenagem que o governo entendeu ser necessária e justa", disse Barreto, "foi decretar luto oficial por três dias."
CANTO E PRANTO - A maciça presença popular em torno da catedral, enquanto isso, prosseguia de forma freqüentemente pouco comum para um velório. Aos que queriam homenagear Kubitschek, parecia prevalecer, em meio a toda emoção, uma tranqüilidade que, num repente, transformava-se em alegria inesperada. Os que atiravam flores sobre o caixão, por exemplo, em seguida irromperam em aplauso. E por longos minutos, em vez de contenção e reverência, a Catedral de Brasília se encheu de palmas.
Haveria talvez algum orgulho, algum sentimento indefinível de vitória a animar os brasilienses por verem sua terra servir de túmulo ao idealizador e fundador da cidade. Este era, aliás, o desejo de Juscelino Kubitschek. Este foi, também, o apelo dramático de sua filha Márcia, ainda em Porto Alegre, quando soube da notícia. "Meu pai será sepultado em Brasília, custe o que custar", ela exclamou no Aeroporto Salgado Filho, enquanto esperava a liberação do taxi aéreo que a levaria ao Rio, no final da noite de domingo. Poucas horas antes, a notícia da morte de JK havia chegado ao ginásio de esportes do Internacional, o "Gigantinho", onde se realizava um espetáculo de balé promovido por Márcia.
Seu desejo, afinal, seria atendido. Excedendo por certo, em repercussão e características, as mais exageradas previsões de amor da população de uma cidade. Iniciada a missa, às 17 horas, tornou-se difícil terminá-la - a emoção popular emperrava os acertos logísticos. "O Brasil perdeu um homem que não guardava ódios nem rancores", pregava dom José Newton, quando foi interrompido pelos gritos de fora e de dentro da igreja. "Juscelino! Juscelino!", ecoava por Brasília. Só às 17h30 a grita se acalmaria, quando dona Sara, tomando do microfone, proclamou: "A melhor maneira que a família tem de agradecer ao povo é deixar que ele carregue o caixão até o cemitério".
SEPULTURA 36 - Foi possível, então, levar a cabo a cerimônia. Conduzido pelos milhares de mãos, o caixão de JK ergueu-se sobre a multidão, que gritava seu nome e, como no Rio, entoava o "Peixe Vivo". Fora da igreja, dois carros do Corpo de Bombeiros esperavam, junto a uma carreta que conduziria o corpo.
Mas o transporte não se faria tão simplesmente. A multidão, prontamente, se apossou do caixão. Eram cerca de 80.000 pessoas, espalhadas entre a catedral e a plataforma rodoviária, e cada tentativa dos bombeiros para colocar o caixão na carreta era repelida aos gritos de "O povo leva, o povo leva" - e nessa disputa, o féretro acabou desviado para o gramado da Esplanada, onde os carros dos Bombeiros não conseguiam chegar.
Finalmente, debaixo da plataforma rodoviária, apesar dos gritos de "Não deixa, não deixa", os bombeiros conseguiram colocar o corpo sobre a carreta. Quinze minutos depois, ainda no eixo monumental, a população recuperaria o caixão, seguindo-se o cortejo pela avenida W 3, já completamente congestionada. Novamente, então, recolocou-se o caixão na carreta. O ritmo do cortejo, entretanto, seria determinado pela massa de acompanhantes que insistia em seu refrão de "O povo leva", eventualmente trocado por "Devagar com JK". Mais de quatro horas se passariam, assim, antes que o corpo de Juscelino Kubitschek alcançasse o Campo da Esperança, onde seria a 35.666ª pessoa a ser sepultada. Sua sepultura, de nº 36, fica a 10 metros da de seu amigo Bernardo Sayão, o primeiro a ser enterrado em Brasília, em 1959 - após morrer num acidente quando comandava a abertura da Belém-Brasília, obra de que JK se orgulhava quase tanto quanto a construção da nova capital. Bem em frente, está fincada a grande cruz do cemitério, que representa a Boa Esperança.
IMPOSSÍVEL ADIAR - No cemitério, pela última vez, cairia um esquema armado, sem contudo causar maiores tumultos. A pedido de um primo do ex-presidente, Ildeu de Oliveira, a Polícia Militar havia organizado um itinerário pelo qual todo o público pudesse entrar na Capela 1 e sair rapidamente. Aos milhares, porém, as pessoas foram se ajuntando pelas imediações da sepultura, muitos subiram nas árvores e, novamente, ouviu-se a voz sóbria, já um pouco fraca àquela altura, de dona Sara Kubitschek. Sobre um banquinho, apoiada no ombro do deputado mineiro Renato Azeredo, suposto herdeiro dos votos de JK em Minas, ela pedia que desimpedissem a entrada da capela. Em resposta, além do atendimento do pedido, ouviu: "Viva JK", "Viva a democracia". E, uma vez mais, o "Peixe Vivo".
Às 23h10, assim, o corpo de Juscelino Kubitschek de Oliveira chegou à beira do túmulo. A distância, ouviam-se cânticos ainda, quando soou o toque de silêncio. Finalmente, às 23h35, o corpo de JK baixava à sepultura. Terminava, àquela hora, uma longa segunda-feira. Pela televisão, pelo rádio, o país inteiro acompanhara o fim de um de seus ídolos mais amados. Os tribunais superiores de Brasília, o Senado, a Câmara, todos haviam prestado a ele sua homenagem. O Executivo reservou-lhe o luto oficial, acrescido da quase despercebida presença de um de seus ministros - Severo Gomes, da Indústria e do Comércio - no cemitério. Também de luto estava a remota Presidente Juscelino, uma vila a 68 quilômetros de Natal.
O mesmo ocorreria em praticamente todos os municípios e Estados. Isoladamente, no alto de um barranco próximo ao bairro da Serra, em Belo Horizonte, um favelado fixou cartazes de cartolina falando de JK. Velhos companheiros e velhos adversários de batalhas políticas, por todas as partes, manifestavam a mesma tristeza. Um imenso vazio estava aberto, a partir daquele instante em que a terra do planalto central começou a cair sobre o corpo do ex-presidente. Nesse momento, uma extenuada dona Sara saía do Campo da Esperança para uma rápida passagem pela casa de um parente, retornando ao Rio na primeira hora da madrugada de terça-feira. Naquela noite, Juscelino Kubitschek dormiria sozinho e para sempre na cidade que construiu e que deixou como símbolo maior de uma vida inteira dedicada à sua pátria. 

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