Por: Maurício Thuswohl, especial para a Rede Brasil Atual
Publicado em 30/03/2012, 14:40
Última atualização às 19:04
PM reprime manifestantes contra evento militar que comemorava o golpe de 1964 (Foto: ©Celso Pupo/Folhapress)
Rio de Janeiro – A queda de braço ideológica que os setores mais conservadores das Forças Armadas tentam travar com o governo desde o anúncio da criação da Comissão da Verdade teve seu ápice na quinta-feira (29), quando o Clube Militar organizou no Rio de Janeiro a celebração “1964 – A Verdade” pelos 48 anos do golpe militar. Com a presença de 300 pessoas – oficiais da reserva e seus familiares eram maioria –, um debate reuniu alguns dos maiores críticos à criação da comissão, como o jornalista Aristóteles Drummond, o médico e escritor Heitor de Paola e o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que ganhou notoriedade ao sugerir que a presidente Dilma Rousseff também fosse convocada para depor sobre seus atos de resistência à ditadura militar.
A presença – na calçada em frente ao Clube Militar, na região central do Rio – de cerca de 300 manifestantes contrários às celebrações pelo aniversário do golpe tornou ainda maior o clima de beligerância com os militares que chegavam para o evento. Na porta, indagado de longe – a entrada dos jornalistas não foi permitida – se mantinha sua posição quanto à convocação de Dilma, o general Rocha Paiva afirmou achar “justo que todos devam ser expostos à nação”. No debate, o general criticou o governo federal: “Querem criar essa Comissão da Verdade 30 anos após os fatos. Isso porque hoje temos ex-militantes da luta armada ocupando posições importantes no cenário político nacional e internacional”, disse.
Também em comemoração ao aniversário do que chamam de “revolução democrática de 31 de março de 1964”, dez coronéis paraquedistas programaram para amanhã (31) um salto coletivo sobre a praia da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Segundo os organizadores, uma grande bandeira do Brasil será pendurada no avião que levará os paraquedistas. Após o salto, todos deverão cantar os hinos nacional e dos paraquedistas, antes de gritar o lema “Brasil acima de tudo”. Segundo o coronel Luiz Oliveira, que assina a convocatória para o salto coletivo, cada saltador também carregará consigo uma bandeira do Brasil.
A ofensiva ideológica dos militares se intensificou desde que o governo anunciou a criação da Comissão da Verdade, mas as crises – maiores ou menores – com os setores que defendem a ditadura acontecem desde o primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Primeiro ministro da Defesa de Lula, José Viegas pediu demissão em outubro de 2004 por se sentir enfraquecido após tentar abrir investigação sobre os assassinatos do Araguaia e o então comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, ter divulgado uma nota que, em alguns trechos, chegava a justificar a prática da tortura como forma de luta contra os opositores do regime militar.
Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, os setores da reserva, sempre utilizando o Clube Militar como trincheira ideológica, fizeram oposição sistemática aos trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. Em 2001, a pressão dos militares sobre FHC cresceu com a criação da Comissão de Anistia.
No governo Lula, após a saída de Viegas, o Ministério da Defesa ficou diretamente ligado ao Palácio do Planalto, com a nomeação do vice-presidente José Alencar como ministro. A mudança aplacou os ânimos entre os militares pró-64, mas estes voltaram a se manifestar quando Lula nomeou Waldir Pires para o cargo. O ex-governador da Bahia teve de enfrentar a dura oposição até mesmo dos três ministros militares por causa da divergência de opiniões quanto à negociação com os controladores de voo (todos militares da Aeronáutica) nos dias que sucederam o acidente com o avião A-320 da TAM, derrubado por um jato Legacy de uso particular em 2007. O ministro não resistiu à pressão e caiu.
Ao convocar Nelson Jobim, figura próxima aos militares, para o lugar de Waldir Pires, Lula conquistou alguma serenidade com os oficiais da reserva. Ministro que ficou mais tempo no cargo (quatro anos), Jobim ainda assim teve de conviver com algumas saias-justas. O caso mais notório aconteceu quando o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira – ex-comandante das tropas brasileiras no Haiti e então comandante militar da Amazônia – concedeu entrevistas fazendo pesadas críticas à política indigenista do governo, assim como à ocupação das fronteiras ao Norte. O caso se resolveu com a exoneração do general, em um raro caso de punição direta após um confronto verbal. Atualmente, Heleno é comentarista de segurança pública da Rede Bandeirantes.
Atritos com governo Dilma
A chegada à Presidência da República de uma ex-combatente contra a ditadura, Dilma Rousseff, voltou a agitar o Clube Militar. Os temores dos oficiais da reserva quanto ao atual governo se confirmaram com o início da discussão sobre a criação da Comissão da Verdade, e os ânimos teriam novamente se acirrado com a substituição de Jobim por Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e figura sabidamente de esquerda.
A primeira crise com Amorim surgiu quando os presidentes dos clubes Militar (general Renato César Tibau da Costa, Naval (almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral e da Aeronáutica (tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista) divulgaram um manifesto no qual criticavam a Comissão da Verdade e acusavam o PT e as ministras Maria do Rosário (Secretaria de Direitos Humanos) e Eleonora Menicucci (Secretaria das Mulheres) de pregar o desrespeito à Lei de Anistia.
A busca pelo confronto ideológico fica clara: “O Partido dos Trabalhadores, ao qual a presidente pertence, diz que estará empenhado junto com a sociedade no resgate de nossa memória da luta pela democracia durante o período da ditadura militar. Pode-se afirmar que a assertiva é uma falácia, posto que, quando de sua criação, o governo já promovera a abertura política, incluindo a possibilidade de fundação de outros partidos políticos, encerrando o bipartidarismo”, diz o manifesto, cobrando ainda de Dilma que seja “presidente de todos os brasileiros, e não de minorias sectárias ou de partidos políticos”.
A reação do governo foi imediata, e o ministro Amorim determinou que os autores do manifesto fossem punidos. Isso desencadeou uma reação ainda mais veemente dos militares e o lançamento de um segundo manifesto, em tom mais agressivo, com o sugestivo título “Eles que venham. Por aqui não passarão!” e que questiona a autoridade do ministro da Defesa. Mesmo tendo sua retirada do site do Clube Militar determinada pelo governo, esse segundo manifesto circulou pela internet e ganhou força, com milhares de assinaturas de militares e civis.
O clima de provocação com o governo aumentou com a realização do ato de ontem, já que a presidente Dilma havia determinado aos ministros militares que não mais ocorressem no país celebrações festivas do golpe de 1964. Em contrapartida, outros setores da sociedade civil também se movimentam: o Ministério Público Federal anunciou que dará entrada em ações criminais contra militares pelo desaparecimento de dezenas de pessoas durante a ditadura e a Organização dos Estados Americanos (OEA) abriu investigação para saber se houve negligência do Estado brasileiro na punição pelo assassinato do jornalista Wladimir Herzog em 1975, durante o regime militar.
Verdades e mentiras
Ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos e ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, Nilmário Miranda lembra que a Comissão da Verdade “foi aprovada com esmagadora maioria no Congresso” e critica os autores dos manifestos contra o governo: “A maioria dos que assinam os manifestos são reformados e participaram da ditadura. Vale lembrar que as Forças Armadas chegaram a ter 23% do orçamento do país! O que implicava desviar recursos da saúde, da educação e da ciência e tecnologia. Centenas deles ocupavam direções de estatais desnecessárias e não tinham que prestar contas a ninguém. A situação hoje é diferente, pois a maioria dos militares tem formação democrática”, escreveu o ex-ministro em seu blog.
Em artigo publicado no jornal O Globo, o jornalista Cid Benjamin – perseguido, preso e torturado pela ditadura – lembra que o projeto aprovado da Lei da Anistia (em 1979) não contava com o apoio da oposição democrática reunida no MDB nem de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Por isso, diz, é mentirosa a iniciativa que quer passar à opinião pública a versão de que a aprovação da lei foi um grande momento de entendimento nacional: “Esquecer isso é tão absurdo como reescrever a história de forma mentirosa e afirmar hoje que a consigna ‘ampla, geral e irrestrita’ tinha como objetivo proteger torturadores e assassinos”.
Leia especial sobre os 48 anos do golpe de 1964:
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