28 de outubro de 2012, em Opinião, Relações Internacionais, por Galante
A América, a ópera inacabada e o resto do mundo
José Flávio Sombra Saraiva
A América, como autodefinida pelos fundadores da pátria e renovada pelos cidadãos dos Estados Unidos da América de hoje, experimenta animada quadra eleitoral. O terceiro debate dos candidatos presidenciais, o último, voltado para a apresentação das propostas para a política externa da maior potência do mundo, assemelhou-se a ópera mal ensaiada. Causou sono e cansaço ao espectador. Evoluiu como um concerto monocórdio. Concluiu, na percepção geral do público exigente, como uma ópera inacabada.
O debate empobreceu os eleitores, particularmente aqueles que pensaram levar em conta as correlações da política externa do seu país com os planos de reforma das instituições internacionais. Outros poderiam ousar que o debate entre Obama e Mitt Romney propiciaria a apresentação de projetos de elevação do patamar cooperativo e democrático do sistema internacional.
Decepcionados ficaram os eleitores internacionalistas da América com o discurso do velho consenso nacionalista e o caminho quase mítico propagado para os Estados Unidos na arena global. Os temas tratados, por meio de opções seletivas e imediatistas, impediram a produção de uma visão de conjunto do mundo e seus desafios. Um debate daquela envergadura teria a responsabilidade diante de seus concidadãos e mesmo para fora dos Estados Unidos. O debate, no entanto, foi provinciano e voltado ao próprio umbigo e aos interesses da perpetuação do poder global do Estado ianque.
Alguma particularidade real, original, e que pudesse distinguir uma ideia de um candidato em relação ao outro foi derrotada pelo simplismo que posterga a responsabilidade internacional da mais proeminente força de dissuasão do planeta Terra. Nenhuma palavra foi dirigida ao Sul do planeta. Observação acerca do desenvolvimento como construção coletiva do sistema internacional foi nem sequer pronunciada. Nada foi dito acerca do clima. Faltou visão universal. Reduziu-se, no jogo dos dois postulantes presidenciais, a responsabilidade global do país global.
O déjà-vu durou uma hora e meia, sem novidades. Afinal, o que interessa é Irã, Israel, Síria, Líbia, Afeganistão e Paquistão. E, acima de tudo, a China. Talvez tenha sido apenas uma tática eleitoral por uma opção amorfa de passar batido pelos grandes desafios das relações internacionais contemporâneas. Se o arranjo era fazer a diferença, ela pareceu mais com as nuances da Coca-Cola em relação à Pepsi-Cola.
O nível do debate, medíocre e repetitivo, talvez apenas confirme o tradicional consenso das elites norte-americanas em política externa. Reitera-se a grande opção externa: a defesa militar da América. Ela se impõe sobre o nível sistêmico e retarda as tarefas necessárias de engajamento dos Estados Unidos no multilateralismo. Trabalhar apenas com sócios seletivos, mesmo quando os meios são globais, é realismo puro, ainda que adocicado pelas evasivas do atual presidente e do candidato republicano. A lógica das ameaças externas é o vetor do pensamento, da ação e da projeção do poder da América.
Para o mundo em transição da governança sincrética do início do século 21, nada disseram os contendores. Para as crises econômicas e sociais que assolam a tradicional aliança atlântica com seus parceiros da União Europeia, nenhuma palavra. A África foi citada uma única vez, ao lado da Ásia e do Oriente Médio, por acaso. A sigla ONU não foi sequer pronunciada em uma noite dedicada à chamada comunidade internacional.
Para o Brasil, o mais significativo foi o silêncio de Obama em relação à América Latina. Não teria seria diplomático que o chefe do poder internacional dos Estados Unidos fizesse um gesto eleitoral para o pessoal da América Latina que ajuda a fazer a América? Foi preciso que o opositor citasse a região abaixo da América, como o fez Mitt Romney, ao lembrar que pode haver cooperação econômica e oportunidades da América com a América Latina.
Estranho, para os eleitores de cá, que o presidente da América veio ao Brasil (país que representa quase a metade da economia da América Latina) e que também busca seu lugarzinho no mundo complexo, mas que ainda não tem peso no léxico do postulante ao seu segundo governo da América. Mas, afinal, somos apenas parte do resto do mundo.
*Ph. D. pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, é professor titular de relações internacionais da UnB e pesquisador 1 do CNPq
FONTE: Correio Braziliense – 28/10/2012
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