ESCRITO POR EDUARDO MACKENZIE | 30 JANEIRO 2012
INTERNACIONAL - AMÉRICA LATINA
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos não pode substituir a justiça dos Estados signatários, nem complementá-la. É só um sistema subsidiário. Isto significa que só tem competência ante um caso de comprovada inatividade da justiça do Estado signatário, em causas qualificadas como de lesa-humanidade.
Paris, 22 de janeiro de 2012
Para María Isabel Rivero
Diretora de Imprensa e Difusão
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
mrivero@oas.org
Estimada doutora Rivero,
Respondo a sua amável mensagem eletrônica de ontem. O “processamento de um caso”, como a senhora diz, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pode ser tudo menos uma coisa: um “processamento” que prescinde dos princípios gerais e universais de Direito.
A senhora me confirma que houve um processo adiantado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e que o informe de 132 páginas deste, que alguém entregou sub-repticiamente à imprensa colombiana, existe e é um documento acabado e autêntico, porém secreto, pois a senhora continua classificando-o como “confidencial”, quando na realidade esse informe já perdeu, de fato, esse caráter.
É um informe autêntico que terá conseqüências para a Colômbia, porém que, ao mesmo tempo, não pode ser dado a conhecer aos cidadãos colombianos.
Tudo isso é não só estranho senão contrário às normas democráticas.
Segundo a imprensa colombiana, o informe da Comissão “reconhece” que após o sangrento assalto realizado, em novembro de 1985, por um movimento terrorista contra o Palácio da Justiça de Bogotá, o Estado colombiano fez “desaparecer” onze civis e uma guerrilheira, e que por esse fatos o Estado colombiano deve ser condenado. O Estado colombiano, segundo esse informe, deve “procurar os corpos e conseguir a completa identificação das 11 pessoas declaradas como desaparecidas”. Esse informe afirma que a Comissão “reconheceu a responsabilidade do Estado no desaparecimento e posterior assassinato do magistrado auxiliar do Conselho de Estado, Carlos Horacio Urán Rojas”. Segundo a imprensa colombiana, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, nesse informe, dá um prazo de dois meses ao Estado colombiano para sancionar “os culpados, localizar os desaparecidos e reparar às famílias”.
As citadas conclusões da Comissão, ao estar longe de constituir fatos provados, pois só refletem as alegações de uma das partes (os “peticionários”), se antecipam de maneira abusiva e substituem de fato a justiça civil colombiana, a qual ainda investiga esses mesmos fatos e não chegou a provar nada de maneira definitiva.
Em sua mensagem de ontem a senhora acusa o Estado colombiano de haver “filtrado” à imprensa o “informe de fundo”. A senhora tem razão. Segundo minhas fontes, esse documento poderia ter sido entregue por um funcionário da Chancelaria colombiana a uma revista bogotana.
Essa “filtração” viola o Artigo 12, parágrafo 3 do regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que diz: “O Secretário Executivo, o Secretário Adjunto e o pessoal da Secretaria Executiva deverão guardar a mais absoluta reserva sobre todos os assuntos que a Comissão considere confidenciais”. Viola também outros artigos do mesmo Regulamento, como os Artigos 20, 43 parágrafo 2, 44 parágrafo 2, 47 e 59. Esse fato, e o conteúdo do informe de 132 páginas, provam que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos viola a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sobretudo seus Artigos 8 (garantias judiciais) e 9 (princípio de legalidade e retroatividade), e viola seus próprios regulamentos de funcionamento interno.
A Convenção americana proíbe os processos secretos e as sentenças secretas. Proíbe os processos nos quais as partes não são ouvidas. O Artigo 8, parágrafo 5, diz: 5. “O processo penal deve ser público, salvo no que seja necessário para preservar os interesses da justiça”.
O Artigo 8 da Convenção Americana diz que durante o processo toda pessoa inculpada “tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a. direito do inculpado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreende ou não fala o idioma do tribunal; b. comunicação prévia e detalhada ao inculpado da acusação formulada; c. concessão ao inculpado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d. direito do inculpado de se defender pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de se comunicar livre e privadamente com seu defensor; e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não segundo a legislação interna, se o inculpado não se defender por si mesmo nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f. direito da defesa de interrogar as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g. direito a não ser obrigado a depor contra si mesmo nem a se declarar culpado, e h. direito de recorrer da sentença ante o juiz ou tribunal superior”. (Ver
http://www.oas.org/es/cidh/mandato/documentos_basicos.asp).
Nenhum desses direitos pôde ser exercido pelos militares colombianos mencionados no “processamento” e no “informe de fundo” da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Sem haver convidado os advogados dos militares acusados na Colômbia pelos fatos do Palácio da Justiça a se expressar e a atuar em direito, não se pode dizer que esse “processamento” seja a culminação de uma instrução ou investigação judicial adiantada com as garantias que a Convenção Americana prevê sobre Direitos Humanos e o direito penal de qualquer país civilizado.
Tudo isso é uma burla dos princípios e dos valores que a Convenção Americana defende sobre Direitos Humanos.
Este “processamento” tem como objetivo não só condenar o Estado colombiano, senão pesar de maneira abusiva, insidiosa e brutal nos processos penais que se executam em Bogotá sobre os fatos do Palácio da Justiça. Esses processos, repito, não culminaram. As sentenças não adquiriram o estatuto de coisa julgada. Portanto, o “processamento” da Comissão Interamericana de Direitos Humanos aparece como uma intromissão paralela e abusiva.
Nos processos de Bogotá os acusados não são o Estado Colombiano, senão vários oficiais aposentados de alta posição das Forças Militares da Colômbia. Estes não participaram nem foram ouvidos no “processamento” executado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em Washington e agora devem, não obstante, suportar o peso desse pretendido “informe de fundo” que foi feito pelas suas costas e dado a conhecer de maneira capciosa.
Todavia, é de conhecimento público na Colômbia que os acusados nesses processos em Bogotá rechaçam vigorosamente todas as acusações que lhes fazem, em particular aquele de ter ordenado o “desaparecimento” de pessoas. Por outra parte, todos eles conseguiram provar sua plena inocência. Grande parte da opinião pública colombiana espera que a justiça absolva esses oficiais aposentados nos próximos meses.
O “processamento” da Comissão aparece então não só como um obstáculo ao devido processo na Colômbia, mas como o protótipo de um novo tipo muito questionável de justiça penal internacional: é um processo no qual a parte A e a parte B (o que a senhora chama o Estado colombiano e os “peticionários”) interagem com o resultado de que, no final, a parte C (os militares julgados em Bogotá) é a que recebe, de fato, a sanção, apesar de que o ator processual C nunca foi convidado para atuar nem a se defender em direito.
Tudo isso é monstruoso, ilegal e detestável. Ao agir dessa maneira, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos não aparece como um modelo de transparência e justiça.
É como se a Comissão Interamericana de Direitos Humanos dispusesse de normas ou usos internos que permitem marginalizar as pessoas naturais que são investigadas pela Comissão, que lhe permite impedir que elas tenham advogados de defesa, que lhe permite negar àqueles o direito à defesa, à informação e ao conhecimento do “processamento”.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos age como se fosse perfeitamente justo e equilibrado que os únicos sujeitos processuais que conhecem o desenrolar da investigação sejam o “peticionário”, os investigadores e o Estado acusado, enquanto que as pessoas privadas que são objeto de acusações, fundadas ou não, do “peticionário”, ou dos investigadores, são excluídas totalmente desse “processamento”.
Isso constitui uma violação ao direito de defesa, exigência fundamental de todo procedimento penal. Pior, isso constitui uma violação à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, sobretudo em seus Artigos II, XVII, XVIII e XXVI.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos não pode substituir a justiça dos Estados signatários, nem complementá-la. É só um sistema subsidiário. Isto significa que só tem competência ante um caso de comprovada inatividade da justiça do Estado signatário, em causas qualificadas como de lesa-humanidade. O caso do Palácio da Justiça de Bogotá não pode ser objeto de atuações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, nem da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois a justiça colombiana funciona e executa processos sobre esse episódio e estes não chegaram à sua fase culminante.
Talvez essa acumulação de anomalias no Direito explique porque o “informe de fundo” da Comissão foi posto em circulação de maneira ilegítima: como a “filtração” de um documento que não pode ser dado a conhecer em sua integridade à opinião pública colombiana, como uma sentença secreta que, ao mesmo tempo, aspira a ter um impacto sobre o curso dos processos em Bogotá nos quais só os defensores do Palácio da Justiça foram acusados, privados da liberdade e condenados em primeira instância.
Isso explica os inúmeros erros de interpretação da imprensa colombiana sobre o que diz o informe de 132 páginas e sobre a confusão acerca das atribuições da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Para evitar tais erros e impedir que o “informe de fundo” da Comissão continue sendo utilizado por alguns como instrumento de linchamento midiático dos oficiais processados em Bogotá, o que não parece ser o objetivo da Comissão, rogo-lhe tornar público esse documento. Em caso contrário, rogo-lhe ter a amabilidade de advertir publicamente que o revelado pela imprensa colombiana nestes dias acerca da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não tem nenhuma validade, pois encontra-se, como a senhora diz, “em uma etapa processual confidencial”.
Rogo-lhe fazer chegar uma cópia dessa carta aos sete magistrados que compõem a Comissão - Dinah Shelton, José de Jesús Orozco Henríquez, Rodrigo Escobar Gil, Felipe González, Tracy Robinson, Rosa María Ortiz e Rose-Marie Belle Antoine - que talvez não estejam inteirados do grande mal-estar que a publicação desse informe “confidencial” causou na Colômbia.
Cordialmente,
Eduardo Mackenzie
Jornalista
From: Rivero, Maria Isabel
Sent: Saturday, January 21, 2012 9:09 PM
To: Eduardo Mackenzie
Subject: RE: solicitação de um informe sobre a Colômbia
Estimado Eduardo:
O Estado obviamente teve oportunidade de se defender. Não uma vez, senão todas as vezes que quis apresentar informação e documentação, ao longo de todos os anos que durou o processo. Além disso, foi o Estado quem filtrou à imprensa o informe de fundo, segundo o que nos informaram os meios de comunicação que o publicaram.
As duas partes do processo foram muito ativas e participaram de todas as etapas processuais. As duas partes em um caso ante o sistema interamericano são os peticionários e o Estado.
A CIDH nunca emite nenhuma decisão sobre admissibilidade nem fundo de um caso sem participação de ambas as partes. Seria uma violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que é a que os Estados aprovaram e é onde se estabelece como se processa uma denúncia na CIDH.
Convido-o a se informar primeiro sobre como é o processamento de um caso na CIDH lendo ao menos os documentos básicos do sistema interamericano de direitos humanos, disponíveis emhttp://www.oas.org/es/cidh/mandato/documentos_basicos.asp. Certamente, se depois de lê-los lhe ficarem dúvidas, continuo à sua inteira disposição para qualquer consulta que deseje realizar.
Saudações cordiais,
Maria Isabel
Tradução: Graça Salgueiro