Ana Palacio - Ana
Palacio, uma ex-ministra das relações exteriores da Espanha e
ex-ministra e Decana Vice-Presidente do Banco Mundial, é membro do
Conselho de Estado da Espanha.
04 de julho de 2013
Edward Snowden é acusado de espionagem, roubo e uso indevido de propriedade do governo dos EUA
MADRID
– A divulgação contínua de informações classificadas pelo antigo
funcionário da Agência de Segurança Nacional norte-americana, Edward
Snowden, desencadeou um debate aceso sobre privacidade e direito
internacional que, infelizmente, ofuscou a dimensão geoestratégica das
suas ações. Na verdade, as revelações de Snowden sobre os programas de
vigilância dos EUA e a sua luta incansável para escapar à extradição
revelam muito sobre o imprimatur do presidente Barack Obama no que diz respeito às relações externas dos EUA.
Mais
do que qualquer outro presidente americano que se enquadra na memória
recente, Obama criou expectativas em todo o mundo, principalmente entre
os socialistas. No entanto, demonstrou estar interessado, sobretudo, ou
mesmo unicamente, em questões internas, o que resultou numa política
externa de reação. A este respeito, o caso Snowden destaca três
elementos:
- as relações entre os EUA e a Rússia;
- a influência dos EUA na América do Sul; e
- as relações dos EUA com a Europa.
A
forma como o Kremlin tratou o caso indica o estado de tensão em que se
encontram as relações entre os EUA e a Rússia. Na sequência do funesto
‘reinício’ das relações bilaterais, a Rússia tem pretendido manter a sua
posição global como obstáculo aos EUA, levando muitas pessoas de ambos
os lados a mergulhar novamente numa mentalidade de Guerra Fria. Ao cair
nesta armadilha, os EUA concederam ao presidente Vladimir Putin uma
vantagem infinita, permitindo-lhe marcar pontos políticos e solidificar a
sua posição a nível interno.
Para Putin, o antiamericanismo é uma ferramenta eficaz para frustrar o descontentamento interno. Medidas como a promulgação da Lei Magnitsky
pelo Congresso dos EUA – considerada na Rússia como uma provocação
norte-americana – possibilitaram ao Kremlin mobilizar apoio a nível
interno, com medidas de retaliação como a proibição de adoções por
estrangeiros, garantindo cobertura à repressão de opositores internos.
Após
a intervenção da OTAN na Líbia, em 2011, vista pelo Kremlin como mais
um exemplo dos excessos do Ocidente, a Rússia assumiu uma atitude mais
agressiva relativamente à sua internacional, sobretudo no que diz
respeito à oposição aos EUA. Este aspecto torna-se especialmente
evidente no apoio persistente da Rússia ao regime de Bashar al-Assad, na
Síria. E a recusa da Rússia em entregar Snowden e, sob o pretexto de
estar a cumprir rigorosamente os parâmetros legais, permitiu que Putin
afrontasse novamente Obama – desta vez, colocando-se na posição de
defensor da legalidade e dos direitos humanos.
Esta
nota dramática foi ampliada pela afirmação cínica de Putin de que
Snowden poderia permanecer na Rússia, com a condição de parar de
divulgar informações ‘que infligem danos aos nossos parceiros
norte-americanos’. Provavelmente, Putin não se oporia a que esses danos
fossem infligidos à portas fechadas, durante uma reunião de balanço com
os serviços de segurança russos.
Além
disso, o caso Snowden reforça a percepção de que os EUA estão a perder
influência na América do Sul. Com poucas exceções notáveis, tais como o
embaixador dos EUA no Brasil, Tom Shannon, a diplomacia dos EUA tem
falta de visão estratégica relativamente à América Latina.
A
eleição de Barack Obama, em 2008, criou grandes expectativas nesta
região, também; mas a sua estratégia governativa tem-se mostrado, no
mínimo, reservada e frequentemente obtusa.
A
influência da China na América Latina aumentou, enquanto os EUA se
mantiveram a margem do fato. A visita de Obama, em maio último,
apresentou-se como um esforço para revigorar as relações no contexto da
ascensão da região da Ásia-Pacífico. Infelizmente, os efeitos negativos
do primeiro mandato de Obama já começam a fazer-se sentir.
Por
exemplo, os EUA são – de longe – o maior parceiro comercial do Equador,
representando mais de um terço do seu comércio externo. No entanto,
ante a possibilidade de o Equador conceder asilo a Snowden, os EUA
sentiram a necessidade de se precipitar, tendo o Vice-Presidente, Joe
Biden, defendido pessoalmente o caso dos Estados Unidos perante o
Presidente do Equador, Rafael Correa, mesmo depois de Obama ter
anunciado que não iria se envolver em ‘conluios e negociações’ sobre a extradição.
A
ameaça de suspensão da ajuda americana ao Equador, que equivaleria a
uns míseros 12 milhões de dólares em 2014, torna ainda mais evidente uma
abordagem desastrosa. As tradicionais fontes de influência dos EUA –
poder suave, alianças regionais e peso financeiro – parecem estar a
secar. A mensagem transmitida ao mundo é clara: os EUA não são a
potência regional que deviam ser.
Finalmente,
em relação à Europa, a atitude irreverente de Obama sobre a alegada
espionagem norte-americana à União Europeia e aos seus Estados-Membros
demonstra que o excepcionalismo americano continua bem vivo. Em vez de
reconhecer a legitimidade das preocupações europeias, Obama menosprezou-as,
como se de frivolidades se tratassem: “Garanto-vos que nas capitais
europeias, existem pessoas que estão interessadas, se não no que tomei
no desjejum, pelo menos em quais serão os assuntos que irei focar caso
venha a reunir-me com os seus líderes”.
Os
EUA têm certamente interesse em obter um conhecimento analítico mais
profundo das tomadas de decisões dos seus aliados europeus, que pode ser
obtido simplesmente através de um telefonema, por exemplo, à chanceler
alemã, Angela Merkel. Ao aceitar que, na prática, a espionagem faz parte
do conjunto de ferramentas dos EUA, nós, europeus, esperamos seja
conduzida de forma responsável.
Ao menosprezar as preocupações europeias sobre a forma como
essa vigilância é levada a cabo, Obama demonstrou um dos piores hábitos
da América – a atitude paternalista em relação à Europa. Na verdade, os
europeus levantaram questões sérias sobre as práticas dos serviços de
informações dos EUA.
As
questões vão desde a falta de profissionalismo inerente ao fato de se
permitir que funcionários contratados realizem este tipo de trabalhos de
natureza sensível, a uma abordagem menos interventiva dos EUA em
relação a certos aliados, como o Reino Unido e a Nova Zelândia,
relegando muitos dos seus outros aliados – incluindo a maior parte da
União Europeia – à condição de “vigiáveis”.
A
amarga ironia é que, neste momento repentinamente pouco auspicioso, a
Europa e os EUA estão a lançar o seu projeto conjunto mais significativo
desde a criação da NATO – um acordo de comércio livre transatlântico.
Em prol do sucesso desta parceria, será demasiado pedir aos EUA que
desempenhem o seu papel internacional com um pouco mais de competência e
profissionalismo e que tratem os seus parceiros com respeito?
Tradução: Teresa Bettencourt
Francisco Vianna
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