terça-feira, 24 de setembro de 2013

A escapada pelos andes (matéria de "ISTO É")





ISTOÉ revela os bastidores da fuga que constrangeu o País e provocou a troca de comando no Itamaraty. Como foi a aventura do embaixador brasileiro e do senador boliviano, que saíram da embaixada em La Paz e atravessaram a fronteiraClaudio Dantas Sequeira, Izabelle Torres e Josie Jeronimo
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PROTAGONISTAS
O então chanceler Antonio Patriota, o embaixador Eduardo Saboia e o senador
boliviano Roger Pinto Molina (da esq. para a dir.) envolveram-se na rumorosa fuga
La Paz, sexta-feira 23 de agosto, 15h. O sol a pino e a baixa umidade reforçam a sensação térmica da primavera boliviana e embalam a tradicional sesta local. No horário em que boa parte dos moradores está cochilando, as ruas livres do tráfego servem como corredor de fuga a dois veículos 4x4 Nissan Patrol, com placas diplomáticas. A bordo de um deles, o senador boliviano Roger Pinto Molina confere o relógio e olha para o alto com um leve sorriso de satisfação. “Foi a primeira vez que pude ver o sol claramente. E de uma perspectiva diferente”, lembra, em referência aos 454 dias que passou asilado numa pequena sala da embaixada do Brasil. Durante esse tempo, Molina jamais teve direito a um salvo-conduto, documento legal que poderia ter sido fornecido pelo governo boliviano para garantir sua saída com tranquilidade em direção ao país no qual decidiu se refugiar. Planejada ao longo de três meses, com o conhecimento de algumas autoridades do governo brasileiro e uma mal disfarçada tolerância do governo do presidente Evo Morales, que enviou vários sinais a Brasília de que não faria oposição à saída de Molina, desde que não pudesse ser acusado de proteger um inimigo com 22 processos no currículo, a “operación libertad” foi cercada de uma série de preparativos, inclusive medidas de proteção pessoal e monitoramento de riscos. No momento em que se preparava para entrar no automóvel, Molina contou com o auxílio de um fuzileiro naval, adido militar na embaixada, para vestir o colete à prova de balas.
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Três dias antes de partir, Roger Molina falou do plano de fuga à sua filha Denise Pinto Bardales, carinhosamente chamada pelo pai de “Talita”, sugerindo que ela fosse para Brasileia, no Acre, onde a mãe, Blanca, vive há um ano com as outras duas filhas do senador, um genro e quatro netos menores de idade. Num gesto revelador das relações próximas entre autoridades dos dois países, a família Molina foi abrigada no Brasil pelo governador Tião Viana (PT/AC), seu amigo. Além de Talita, sabiam da “operación libertad” o embaixador Marcelo Biato, o conselheiro Manuel Montenegro e o encarregado de negócios da embaixada Eduardo Saboia, que assumiu a responsabilidade pela fase final da operação, que era retirar Molina da Bolívia e levá-lo, são e salvo, para o Brasil. Há pelo menos um mês, a operação chegou aos ouvidos de políticos, advogados e empresários que partilham informações e interesses nas relações entre Brasil e Bolívia. Um plano alternativo chegou a ser elaborado, na verdade, envolvendo uma operação triangular. Numa primeira etapa, Molina seria levado de avião para o Peru. Depois, seria conduzido ao Brasil. Ao verificar que o envolvimento de um país que nada tinha a ver o caso poderia ampliar as complicações de um plano já complicado, decidiu-se pela viagem de automóvel entre La Paz e Corumbá.
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Escondidos na neblina Na segunda-feira 19, num gesto que seus superiores no Itamaraty interpretariam como bisonha tentativa de despistar sua participação na operação, o embaixador Biato saiu de férias e coube a Saboia organizar todos os detalhes finais e fazer a viagem. Na quinta-feira 22, dia anterior à fuga, Molina recebeu a visita de um médico do Senado boliviano, que produziu um laudo atestando que ele enfrentava problemas de saúde, inclusive depressão. Substituindo Biato em sua ausência, naquele mesmo dia, Eduardo Saboia enviou uma cópia do laudo para o Itamaraty e, no mesmo despacho, observou que a situação pedia uma intervenção sem demora em auxílio do senador, afirmação vista como uma senha para o início da “operación libertad.”
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Ao deixar, na sexta-feira 23, a garagem do edifício Multicentro, complexo empresarial onde funciona a sede diplomática brasileira, o comboio seguiu em velocidade pela avenida Arce rumo à autopista El Alto, na saída da capital boliviana. A orientação era fazer meia-volta e retornar à embaixada ao menor sinal de que autoridades bolivianas pretendessem criar embaraços ao comboio. Lembrando que chegou a passar mal no trajeto, Molina conta: “Se eu fosse para um hospital, corria o risco de ser preso. Então decidimos seguir”. Depois de seis horas de estrada, o grupo chegou a Cochabamba, na região do Chapare, uma das principais bases eleitorais do presidente Evo Morales. Ali, milhares de famílias de agricultores plantam a folha da coca, tradicional ingrediente da cultura boliviana, que em grande parte é desviada para servir ao narcotráfico. Em Cochabamba, a avenida Blanco Galindo corta a cidade. O comboio levou três horas para atravessar a região, sob neblina espessa. A tensão não deixava ninguém cochilar. “Se fossemos detidos ali, seria a morte ou algo parecido”, afirma o senador. Em mais de um contato com o governo brasileiro, quando enviou uma emissária em audiência com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o governo de Evo Morales já havia deixado claro que gostaria de ver Roger Molina fora do País, desde que jamais pudesse ser acusado por seus próprios eleitores de proteger um político acusado de corrupção pela Justiça. “É loucura!”, reagiu Dilma ao ser consultada sobre a operação, deixando claro que o Brasil não poderia aceitar uma proposta que não tinha garantia contra riscos, inclusive possíveis ameaças à vida de Molina. Convencida de que o governo brasileiro fizera sua parte, ao garantir asilo para o senador boliviano, Dilma esperava que, incomodado com o desgaste que Molina causava a Morales, este tomasse a única medida cabível, que era dar o salvo-conduto.
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Fugitivos de fraldas Pano de fundo daquela viagem dramática, as relações entre Dilma e Evo Morales atingiram um momento especial quando ambos se encontraram durante uma viagem à África. Evo pediu uma “bilateral” à presidenta brasileira e aproveitou o encontro para denunciar que o senador estava tendo um comportamento inapropriado, chegando a fazer reuniões políticas. Em seguida, Dilma determinou ao chanceler Antonio Patriota que verificasse as queixas de Morales, pedindo ao ministro que se encarregasse pessoalmente de resolver o caso com as autoridades bolivianas. Quan­­­­do Patriota lhe disse que pretendia escolher um responsável para tocar a missão, Dilma reagiu de forma dura, conforme relatou um assessor palaciano: “Você deve cuidar de tudo pessoalmente”.
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SUSTO NA FRONTEIRA 
A polícia boliviana parou a comitiva e solicitou documentos. Atemorizado,
o senador Roger Pinto pensou em sair correndo a pé do carro
Às 4h30 da madrugada do sábado 24, já em Santa Cruz de La Sierra, o comboio fez uma parada técnica para “esticar as pernas”. Antes e depois, o combinado era seguir caminho de qualquer maneira. Para não perder tempo com refeições, levaram-se garrafas de água mineral, barras de cereais, frutas e biscoitos. Para não irem ao banheiro, usavam fraldas geriátricas. Antes do amanhecer, já estavam na estrada rumo a Puerto Suarez. Percorreram mais 660 quilômetros pela Rodovia 4, cruzando San José de Iquitos e outros três pequenos municípios. Na rota de saída do território boliviano, passaram por cerca de 12 postos de controle, chamados “trancas”. A cada parada, o motorista no veículo da frente identificava o comboio diplomático: “Estamos em missão diplomática, deixem-nos passar”. Os viajantes jamais foram submetidos a qualquer controle que, mesmo em operação de rotina, poderia detectar alguma falha nos documentos portados pelo senador, político conhecido no país inteiro.
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TERRITÓRIO INIMIGO 
O momento mais difícil e perigoso da fuga ocorreu quando a comitiva passou
por Chapare (foto), região cocaleira dominada por aliados de Evo Morales
Perto das 12h30, o grupo chegou a Puerto Suarez, fronteira com Corumbá. A luz amarela intermitente no painel do veículo alertava para o baixíssimo nível de combustível. Foi então que Saboia, católico praticante, abriu a “Bíblia” em Salmos e rezou baixo com Molina, evangélico. A tensão aumentou ao pararem no último posto policial na fronteira boliviana. Embora Saboia tivesse plena ciência do interesse de Morales em permitir que Molina deixasse o país, havia o temor de um imprevisto. “Se o primeiro carro fosse bloqueado, teríamos que jogar o nosso no acostamento e passar. Ou eu desceria e sairia correndo para cruzar a fronteira a pé”, revelou o senador boliviano. Após o trajeto de 22 horas, Molina disse, como um desabafo: “Senti um conforto emocional muito grande, após tanta pressão durante 22 horas e meia e 1,6 mil quilômetros. Foram momentos dramáticos e emocionantes”, desabafou Molina.
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Cercados no hotel Minutos depois, já no Brasil, eles tiveram que fazer outra parada, desta vez no posto da Polícia Federal. Estavam em Corumbá. Dois policiais fardados pediram que Saboia e Molina aguardassem no interior do veículo, enquanto eles faziam algumas ligações. Cerca de 40 minutos depois, cinco policiais à paisana chegaram ao local. Cumprimentaram a todos e disseram ter ordens superiores para fazer a escolta do grupo. Apreensivos e bastante cansados da tensão da viagem, Molina e seus acompanhantes receberam um tratamento regular, diante das circunstâncias. Foram levados ao hotel Santa Mônica. Ainda no carro, Molina ligou para o senador Ricardo Ferraço (PMDB/ES), presidente da Comissão de Relações Exteriores, que almoçava despreocupadamente com a esposa em sua casa, em Vitória (ES). Ao atender, Ferraço ouviu Molina gritar do outro lado da linha. “Estou no Brasil! Necessito de ajuda para chegar a Brasília.” Ferraço primeiro tentou contato com o presidente do Senado, o peemedebista Renan Calheiros (AL). A ideia era dar um caráter mais oficial à acolhida de Roger Molina. “Vai que ele oferece um avião da FAB? Era uma questão humanitária”, diz. Sem conseguir falar com Renan, ele procurou empresários e, duas horas depois, conseguiu um avião para levar o senador até a Capital Federal.
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Às 14 horas do sábado 24, o senador Molina adentrou ao hotel com Saboia e o resto do comboio. Foi direto para seus aposentos, no quarto andar. Os próprios policiais fizeram o check-in. Numa medida para evitar a presença de desconhecidos e monitorar o que se passava no quarto do senador, bloquearam todos os apartamentos daquele andar. O boliviano tomou um banho, trocou de roupa e tirou uma foto com celular. Anexou a imagem a um SMS que enviou para a filha. “Cheguei em Corumbá. Avise a todos que estou bem!” Funcionários do hotel ouvidos por ISTOÉ afirmam que o trânsito de autoridades na fronteira é comum. Por isso não suspeitaram da missão até o fim da tarde, quando “um ministro” ligou querendo falar com Saboia. 

O prefeito de Corumbá, Paulo Duarte (PT), foi acionado no início da noite. O primeiro contato partiu do Itamaraty, o segundo de uma autoridade que ele prefere proteger. “Pediram que eu descobrisse se alguém com o nome de Roger Pinto Molina havia entrado em algum hospital da cidade”, relata. Funcionários da Secretaria de Saúde do município foram tirados de casa para fazer a varredura. Como não acharam ninguém, tentaram os hotéis. O Santa Mônica foi a primeira opção. Ao comunicar que havia encontrado Molina, Duarte foi orientado a achar um médico de confiança para examiná-lo. O médico encontrou o senador boliviano com um quadro agudo de desidratação e taquicardia. Ele foi medicado e orientado a repousar.
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Às 20h, Ferraço desembarcou no aeroporto local. Seguiram-se, então, novos momentos de tensão. Pelo que ficara combinado, era nesse horário que ele deveria resgatar Molina. Não encontrou ninguém e ligou para o senador. Tentou também o diplomata Eduardo Saboia, mas ambos estavam incomunicáveis. “Foram horas de preocupação. Não sabia o que ia acontecer”, afirmou Ferraço. Uma hora depois, um agente da PF chegou ao aeroporto e avisou ao senador que ia buscar Molina. Às 22h, os agentes da PF montaram guarda na recepção do hotel, para impedir movimentos de entrada e saída, ação que ficou registrada nas câmeras de circuito interno de tevê do hotel. 
Conselhos do governador No aeroporto, Saboia e Roger Molina se despediram dos policiais e embarcaram. “Estou aliviado em estarmos no Brasil. Só estou preocupado com a minha família, que ficou na Bolívia”, afirmou um emocionado Saboia a Ferraço. A esposa de Saboia também é diplomata, lotada em Santa Cruz, e estava em casa com o filho. No trajeto, os dois contaram a Ferraço que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, havia telefonado para o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, pedindo que um médico credenciado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) fosse até o hotel atender Molina. Era 1h20 quando o avião desembarcou em Brasília. O senador boliviano pediu, então, para que o carro oficial do senador Ferraço o levasse para a casa do advogado Fernando Tibúrcio, que possui vários contatos com a oposição boliviana. É amigo, inclusive, do empresário Tito Quiroga, que já foi candidato a presidente e é adversário de Evo Morales. Um pouco depois, Molina deu um longo depoimento ao documentarista Dado Galvão, que se aproximou de integrantes da oposição ao governo Dilma durante a patrulha petista contra a dissidente cubana Yoani Sánchez.
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Ao descobrir que diplomatas brasileiros organizaram um plano que ela havia condenado de forma clara e definitiva, a presidenta demitiu Antonio Patriota de um cargo que ele conseguia conservar com dificuldades imensas, apesar da vitória inédita representada pela conquista da direção geral da Organização Mundial de Comércio por um candidato brasileiro. Submetido a uma investigação para apurar suas responsabilidades, o próprio Saboia foi removido de seu posto em La Paz e, em qualquer caso, só poderia contar com oportunidades de promoção na carreira em nova combinação política. O destino do senador Roger Molina parece encaminhado para que ele permaneça no País, desde que tenha disposição para manter uma postura discreta, longe de manifestações políticas, comportamento que se costuma pedir a quem pretende assumir a condição de refugiado. Foi por essa razão que, após conselhos do senador Jorge Vianna (PT-AC), ele cancelou depoimentos públicos nos quais seria chamado a criticar Evo Morales e, por tabela, fazer referências negativas à diplomacia do governo Dilma.
Fotos: André Ribeiro; Marcos Boaventura/Folhapress; Paulo Yuji Takarada; Joel Rodrigues/FRAME
Fotos: Michel Filho/Agência O Globo; Leon Neal/afp photo
Fotos: Martín Alipaz/EFE; Pedro santana/afp; Alan marques/folhapress

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