quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

HISTÓRIA: A grande farsa de Stálin


Eduardo Sklarz | 01/11/2004 00h00
Stalin inventou seu nome e seu passado e mudou - literalmente - a história de seu país, adulterando documentos e biografias. Sua influência foi tão grande grande que só agora, mais de 50 anos depois de sua morte - e uma década após o fim do comunismo - , é que os arquivos secretos da ex-União Soviética estão tirando a máscara do homem mais temido e poderoso de seu tempo
Na madrugada de 26 de abril de 1986, o reator 4 da usina de Chernobyl, na Ucrânia, saiu do controle durante um teste de rotina. A reação em cadeia criou uma bola de fogo que explodiu a tampa de aço que lacrava o ambiente e causou o pior acidente nuclear da história. A onda radioativa abriu frestas na Cortina de Ferro e mostrou ao mundo cenas de uma tragédia até então mantida em segredo. Mas mesmo com o fim do comunismo soviético, em 1991, e a abertura do país ao capitalismo ocidental, faltava revelar um último mistério. Talvez o maior deles, que envolve um dos protagonistas dessa trama: Josef Stálin. Durante os 30 anos em que liderou o maior país do mundo, Stálin teve tempo e instrumentos para inventar sua própria biografia. Criou uma azeitada máquina de propaganda que construiu a imagem pública de líder carismático e uma não menos eficiente polícia política que tratou de eliminar as versões dissidentes.
Toda encenação fez efeito. Mesmo depois de deixar o poder, em 1953, pouco se fez para mudar, ou pelo menos autenticar, sua história. Pelo contrário, seus sucessores, Nikita Kruschev e Leonid Brejnev, trabalharam para perpetuar o mito. “Mesmo depois de morto, Stálin permaneceu no imaginário do povo russo como uma entidade superior. E, apesar do desmanche de seu legado político, não houve interesse nem de historiadores nem de políticos para desvendar quem foi esse homem”, diz o historiador britânico Simon Sebag Montefiore, autor de Stalin – The Court of the Red Tsar (“Stálin – A Corte do Czar Vermelho”, inédito no Brasil). Para ele, a situação só começou a mudar a partir de 1999, com a abertura progressiva dos arquivos oficiais dos últimos 50 anos. Para seu livro, por exemplo, Montefiore teve acesso a papéis proibidos há apenas alguns anos, como os arquivos da Corte Suprema da União Soviética, documentos militares do Exército, do Ministério da Defesa e do Estado-Maior das Forças Armadas e da NKVD (depois KGB), a polícia secreta. Mas a menina dos olhos dos historiadores são os disputadíssimos Arquivos Centrais do Partido Comunista. É ali que está nascendo uma nova versão da biografia de Stálin. “Não basta mais descrevê-lo como um enigma. Agora sabemos o que ele falava, escrevia, o que cantou, comeu e leu. Agora, enfim, a biografia de Stálin pode ser completamente reescrita”, afirma Montefiore.
Estréia
Iosef Vissarionóvich Djugashvili nasceu em 6 de dezembro de 1878 – e não em 21 de dezembro de 1879, a data oficial – numa cabana em Gori, na Geórgia, uma província no Cáucaso, mais próxima de Bagdá que de São Petersburgo, então a capital do império dos czares. Desde menino evitava encontros com o pai, um sapateiro que vivia bêbado, espancava a mulher e castigava o filho com socos na orelha. Com o apoio da mãe, estudou por dez anos num seminário jesuíta, mas ainda muito novo converteu-se aos ideais marxistas que sopravam, principalmente, da Alemanha. Adotou o nome de Koba (herói do romance O Parricida, de Alexander Kazbegi, escritor georgiano muito popular na época) e trocou a Bíblia pela revolução.
Ainda na adolescência teve seu único emprego formal, como assistente no Instituto Meteorológico de Tiflis. Aos 19 anos já vivia na clandestinidade e trabalhava para o Partido Comunista local: sua principal missão era obter passaportes falsos, mas chegou a participar de roubos aos carregamentos de dinheiro do czar. Foi preso sete vezes, mas sempre conseguiu escapar da prisão e voltar do exílio. Ao todo foram dez anos de idas e vindas para os campos de prisioneiros. “Esses períodos foram importantes para a formação política de Stálin. Como eram vigiados apenas parte do tempo e não eram obrigados a trabalhar ou se apresentar às autoridades, os revolucionários podiam se reunir à vontade, ler e se corresponder com os camaradas em São Petersburgo e no exterior”, diz Montefiore.
Nessa época, teria travado o primeiro contato com Lênin, o líder dos bolcheviques (a ala mais radical do partido comunista; a outra, moderada, era chamada manchevique). “Foi um encontro postal”, relataria Stálin em 1924, sem ligar para o aparente paradoxo. Segundo sua versão, na correspondência Lênin explicitava a Stálin todos os planos revolucionários do partido. Se fossem verdadeiras, as cartas de Lênin colocariam Stálin no centro dos acontecimentos, não como um subordinado, mas como um seguidor de primeira hora, um confidente íntimo do grande líder bolchevique. Certamente seriam ótimas credenciais para quem quisesse sucedê-lo. Nenhuma dessas cartas, no entanto, sobreviveu. “Não posso me perdoar por ter feito com elas aquilo que o revolucionário na clandestinidade fez com muitas outras, ou seja, lancei-as às chamas”, disse Stálin. No entanto, comprovadamente, eles só se conheceram em dezembro de 1905, durante uma conferência dos bolcheviques na Finlândia.
Koba se casou em 1906 com Yekaterina Svanidze, mas a alegria durou pouco. Ela morreu de tifo (ou tuberculose, não se tem certeza) no ano seguinte. Em 1912, deixou a Geórgia rumo à capital do império, onde trocou novamente de nome, passando a assinar Stálin (“homem de aço”). Em 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, foi julgado incapaz para o serviço militar. Tinha o pé esquerdo defeituoso e o braço esquerdo mais curto que o direito.
Ascensão
O destino de Stálin mudaria – como o de toda a Rússia – em 1917. Em fevereiro, enfraquecido pelas revoltas populares de 1905 e pela perda de quase 7 milhões de homens na guerra, o czar Nicolau II renunciou. A ascensão do moderado Alexander Kerensky ao poder não conteve a insatisfação geral, e em outubro Lênin e os bolcheviques finalmente chegaram ao poder. “O papel de Stálin na Revolução de Outubro foi quase burocrático. Ele se limitou a passar as instruções do Comitê Central aos órgãos revolucionários”, afirma o ex-general russo Dmitri Volkogonov, autor da recente biografia Stálin – Triunfo e Tragédia. “Não há qualquer evidência de sua participação nos combates, na organização dos destacamentos armados ou nas visitas aos navios e fábricas com o intuito de incitar as massas. Ele permaneceu no quartel-general, certamente no palco central dos acontecimentos, mas sempre como figurante.”
Sua ascensão ao centro do poder começou durante a guerra civil, entre 1918 e 1921, que opôs o Exército Vermelho, liderado por Leon Trótski, aos chamados russos brancos, apoiados pela Inglaterra, França e Estados Unidos. Causando mais estragos que os combates, no entanto, era a fome a grande vilã daqueles dias. Stálin foi designado como chefe da distribuição de alimentos. “Era, nessa época, um interlocutor freqüente de Lênin, mas esse o considerava não muito mais que um executor confiável”, diz Montefiore. Foi dentro da estrutura burocrática do partido que Stálin começou uma rápida escalada ao poder. Foi Comissário das Nacionalidades e Comissário do Controle do Estado, membro do Conselho de Defesa, membro do Orgburo (órgão responsável por checar os trabalhos das comissões do partido) e, finalmente, membro do Politiburo, o escritório político do partido, por onde passavam todas as decisões importantes.
Stálin se revelou um bom administrador nas funções que ocupou e utilizou cada uma delas para conquistar apoio de seus pares. “Além disso, durante a guerra civil, esteve à frente dos organismos que dotaram o Estado das ferramentas de controle e punição dos adversários”, diz Volkogonov. Em 1922, seus camaradas sabiam que ele não era simplesmente um executor dedicado, mas um especialista nas chamadas “medidas extraordinárias” ou “administrativas”, dois eufemismos para as “ações de repressão”.
Subestimado pelos camaradas (Trótski o chamava de “medíocre”), Stálin aproveitou as disputas internas e a recusa geral da idéia de liderança coletiva. Além do apoio formal, mas verdadeiro, de Lênin, ele contava com Lev Kamenev e Grigory Zinoviev, membros do Politiburo, para lançar o conceito de “segundo líder”, ou seja, aquele que estava e estaria para sempre comprometido com as idéias do primeiro – Lênin, é claro.
Em 1920, o aparato do Comitê Central já havia crescido o bastante para necessitar de alguém que cuidasse de sua organização. Foi a hora do bote. Em 5 de abril, foram nomeados três secretários. Kamenev trabalhou durante quase dois anos para convencer os demais da necessidade de um secretário-geral. Em 1922, o próprio Kamenev presidiu o plenário que indicou a candidatura de Stálin.
Se, depois da guerra, Lênin consolidou sua liderança política e ideológica e Trótski reafirmou sua influência entre a população e os militares, Stálin emergiu como controlador dos órgãos do partido e do Estado. “Ele criou seu próprio sistema burocrático, um sistema tão intrincado que logo se tornaria comum dizer ‘Stálin é o Estado’”, diz Volkogonov. Segundo ele, para entender como isso foi possível, é preciso considerar diversos fatores: o passado autocrático da Rússia, a ausência de hábitos democráticos na nova sociedade, a baixa cultura política do povo e do partido e a falta de proteção legal do indivíduo frente ao Estado.
Segundo Montefiore, Lênin certamente apoiou a candidatura de Stálin. “Ninguém assumiria o poder sem a investidura dele”, diz. No entanto, ele considerava o novo cargo de Stálin muito mais administrativo que político. “Naquele mesmo ano, Lênin se arrependeu da escolha, quando percebeu que, a qualquer sinal de contrariedade, aflorava em Stálin um gênio brutal que não hesitava em resolver desavenças com fuzilamento”, afirma. Em 1922, quando se discutia a forma como o Estado Comunista iria organizar as diferentes repúblicas que formavam o ex-império russo, Stálin e Lênin ficaram de lados opostos da mesa. O primeiro defendia que fossem mantidas as autonomias e criada uma federação de repúblicas. Posição contrária à de Lênin, que acabou prevalecendo e que resultou na criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS. Em um de seus últimos escritos, Lênin comentou o comportamento de Stálin durante a disputa. Uma avaliação política e moral (quase profética) de seu sucessor: “Acredito que o papel aqui desempenhado pela pressa de Stálin demonstrou sua propensão a recorrer a métodos administrativos, bem como sua animosidade em relação ao nacionalismo social. E animosidade, em política, em geral dá os piores resultados”.
Quando Lênin morreu, em 1924, já não havia como deter o Homem de Aço. Durante as sucessivas reuniões e acordos para ver quem assumiria a herança de Lênin, Stálin formou uma grande lista de inimigos. Quem não o defendeu desde o primeiro momento foi perseguido, expulso e processado, depois que ele assumiu o poder. Dos 139 eleitos ao Comitê Central naquele ano, 98 acabariam fuzilados, acusados de traição, espionagem e outros crimes, nos dez anos seguintes. Antigos aliados, como Zinoviev e Kamenev, não escaparam dos expurgos. Acusados de integrar uma conspiração liderada por Trótski, foram levados a julgamento público. Na esperança de escapar da morte, confessaram o crime e pediram clemência. Em 25 de agosto de 1936, foram executados com tiros na nuca. As balas foram guardadas por Genrikh Yagoda, chefe da polícia secreta, e herdadas por Nicolai Yezhov, alguns anos depois, quando Yagoda também foi executado. Os projéteis foram recentemente localizados nos arquivos da polícia.
Trótski, seu principal opositor e considerado por muitos setores do partido o sucessor natural de Lênin, foi preso e expulso para a Sibéria. Quando conseguiu fugir, foi caçado e morto, em 1940, no México. As perseguições não tinham fronteiras. Dos 394 membros do Comitê Executivo da Internacional Comunista em janeiro de 1936, apenas 171 viviam em abril de 1938. Hoje, feitas as contas, Stálin ordenou mais execuções de membros do Partido Comunista Alemão que Hitler. Também não poupou parentes. Suspeito de espionar para os alemães, o cunhado Alexander Svanidze teve a chance de pedir perdão, mas se recusou. Em seu depoimento consta que teria dito. “Perdão do quê? Não cometi crime algum”. Foi fuzilado.
Mito no poder
Aqui vale a pena abrir um parêntese para explicar o modo com que Stálin via o comunismo – que era, segundo a cientista política russa Tatiana Vorozeikhina, diferente da visão marxista-leninista. “Ele acreditava mais no Estado que no partido, mais na força que na ideologia. Promoveu um incrível centralização de poder e o sentimento nacionalista”, diz. Do ponto de vista econômico, Lênin acreditava que o socialismo seria fruto de um acordo entre camponeses e operários, uma união cujos termos explicitou com a Nova Política Econômica – a NEP. Nela havia alguma liberdade de comércio e produção e espaço para ações democráticas entre os dois grupos. Stálin acabou com a NEP e achava que democracia era obedecer as determinações do partido, ou seja, dele próprio. Na área política, Lênin defendia a internacionalização da revolução e a solidariedade entre os partidos comunistas de todo o mundo. Stálin não queria saber disso. Acreditava na formação de uma nação forte, no comunismo dentro de suas fronteiras. “Depois de reprimir e colocar os políticos sob controle, o stalinismo tratou de conquistar e as classes trabalhadoras”, diz Vorozeikhina. E, para falar com o povo, Stálin colocou em operação uma máquina propagandística inédita na história.
“Stálin parecia um deus. Quando criança, eu tinha certeza de que ele era o melhor homem do mundo”, diz Galina Kuptsova, ex-professora de história. Nascida na Rússia e hoje com 76 anos, ela se recorda: “Sabíamos de cor os poemas sobre ele, líamos sobre suas decisões inteligentes nos jornais e víamos seu retrato em todo lugar. Amar o país era o mesmo que amar Stálin”. Acusado de inimigo do povo, o pai de Galina foi preso e depois mandado ao front contra a Alemanha, durante a Segunda Guerra. O irmão dela morreu de fome, pois a mãe – mulher de um inimigo do povo – não conseguia trabalho. “Mas eu não podia entender que Stálin era culpado por nossa dor. Quando ele morreu, chorei como todo mundo”, diz ela.
O deus comunista não era conhecido pela inteligência, nem era bom de oratória. Desconhece-se qualquer coisa relevante que tenha escrito. Apesar disso, era o “editor supremo” do jornal Pravda, onde cometia artigos que invariavelmente terminavam com a frase “tudo isso é certo porque vem do leninismo”. Também gostava de citar Marx. Como não entendia a dialética, convidou o filósofo alemão Jan Sten para ser seu professor particular. Tinha aula duas vezes por semana, mas de vez em quando se enfurecia com tanta abstração. “Quem emprega toda essa bobagem na prática?”, escreveu em um de seus editoriais. Declarado adulador de Trótski, Sten foi executado.
Stálin chegou a escrever livros sobre a história do socialismo. O mais importante deles, o Curso Resumido, tornou-se o principal guia para a educação política do povo soviético e contém inúmeras auto-referências a sua genialidade e sabedoria. A edição de 1938 saiu com 43 milhões de exemplares. Criou o “Prêmio Stálin” para patrocinar artistas alinhados com o regime e um concurso para escolher o novo hino nacional. A letra vencedora, que ele mesmo aprovou, criada por Mikhalkov e Registan, dizia: “O grande Lênin iluminou nosso caminho e Stálin nos fez leais ao povo”.
Durante muito tempo, a encenação funcionou também para platéias internacionais. Ninguém sabia realmente o que acontecia dentro da União Soviética. O acesso ao país era proibido e os dados oficiais disponíveis continham apenas parte da verdade. Segundo o historiador britânico Eric Hobsbawn, em A Era dos Extremos, durante a década de 1930, assolada pela crise econômica global e pela ascensão do fascismo, o comunismo de Stálin, com os bons números de sua produção industrial e da produção de alimentos, não parecia tão ruim. Ao contrário, surgia como opcão à miséria e ao fascismo. “Criticar o modelo soviético podia ser confundido com apoiar gente como Hitler, Mussolini e Franco, na Europa, e Vargas e Perón, na América Latina.”
Quente e fria
Stálin tinha consciência de que estava cada vez mais isolado na Europa e sabia, como todo mundo, que a guerra era uma questão de tempo. Em 1939, os soviéticos produziam mais armas que a Alemanha nazista. Mas Stálin não queria enfrentar Hitler e assinou com ele um pacto de não-agressão, conseguindo adiar o conflito dentro de suas fronteiras até 1941.
Mesmo assim, Stálin não estava preparado para a guerra. Correspondências entre os comandantes militares e o quartel-general soviético mostram que Stálin foi surpreendido pela invasão e demorou a reagir. “Ele não seguia as sugestões de ninguém, não confiava em seu EstadoMaior e tomava suas decisões, muitas vezes, sem ao menos consultar a frente de batalha”, diz Montefiore. Em três semanas de guerra, os soviéticos perderam 2 milhões de homens, 3,5 mil tanques e 6 mil aviões. Em 28 de junho de 1941, quando os tanques alemães já haviam penetrado 450 quilômetros em território soviético e conquistado Minski, Stálin teria dito: “Tudo está perdido. Lênin construiu este país, nós o arruinamos. Desisto!” Depois disso, desapareceu por dois dias. Mas era apenas outra jogada do czar vermelho, inspirada em Ivã, o Terrível, que costumava usar a tática de deixar momentaneamente o poder para testar a lealdade dos seus seguidores mais próximos.
Deu certo. Reeleito pelo Politiburo e com ainda mais poder, Stálin promoveu o general Zukhov, a quem passou a ouvir para quase todas as decisões militares. No início de outubro, as forças alemãs se aproximaram de Moscou, mas Stálin ordenou a permanência na cidade. Seus recursos para resistir, no entanto, pareciam estar no fim quando, no dia 12, ele foi informado que o Japão não o atacaria. Isso significava que poderia contar com as tropas posicionadas no Extremo Oriente. “Em cinco dias, 400 mil homens chegaram a Moscou, em comboios ininterruptos de trens. Uma das maiores façanhas logísticas de todas as guerras”, diz Montefiore. No final, foram os russos que entraram em Berlim.
Com o fim da guerra, Estados Unidos e União Soviética emergiram como duas superpotências. Stálin foi intransigente na manutenção de sua influência nos países libertados dos nazistas pelos soviéticos. Assim, tornou-se padrinho dos regimes da Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Bulgária, Albânia, Hungria e Romênia. Foi um dos mentores das regras esquizofrênicas que marcaram a Guerra Fria: cada superpotência respeitava ou, pelo menos, se conformava com o que acontecia no círculo de influência da outra.
O último ato marcante de Stálin no cenário internacional foi atrair a China para a esfera soviética. Em 1949, Stálin se encontrou com Mao Tsé-tung, quando comemorava seu 70º aniversário (na verdade tinha 71), em Moscou. O pacto se tornou um pesadelo para os Estados Unidos e marcou a política externa do continente por mais meio século.
Stálin morreu em 1953. O grande ditador teve um derrame em casa e foi atendido por seus auxiliares mais próximos. Sem ter o chefe para lhes ordenar o que fazer, eles só autorizaram os médicos a atender Stálin 12 horas depois do derrame. “Quando os médicos o viram, não puderam acreditar: o Homem de Aço estava completamente imóvel e transfigurado, deitado num sofá encharcado pela própria urina”, afirma Montefiore.
Mais de meio século depois, no entanto, sua sombra permanece estendida em solo russo. No ano passado, uma pesquisa de opinião na Rússia revelou que Stálin teria 26% dos votos se fosse vivo e disputasse a presidência. O apoio é grande entre os menores de 30 e os maiores de 60, que relacionam o líder aos tempos de potência. “Todos agora tratam Stálin como criminoso”, diz Vladimir Razin, 82 anos, ex-professor de filosofia na Universidade Estadual de Moscou. “Mas, se tudo era tão ruim, por que havia tão boas músicas e pinturas? A arte reflete a vida real. E veja os filmes da época de Stálin: homens honestos, mulheres com princípios morais. Hoje, os filmes só mostram os russos como drogados e assassinos. Que tipo de realidade eles refletem?”

Gulag: A tragédia

Os campos de trabalhosforçados soviéticos levaram milhõesde prisioneiros à morte
Os soviéticos foram pródigos em criar siglas. Por trás de uma delas, Gulag (Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou "Administração Central dos Campos"), escondia-se uma rede de campos de prisioneiros, onde condenados por crimes contra o Estado eram isolados e submetidos a trabalhos forçados. Embora fossem comuns no império dos czares - Pedro, o Grande, utilizou trabalhos forçados para construir São Petersburgo, por exemplo -, os campos soviéticos atingiram o inominável. "No maior deles, em Kolyma, 3 milhões de pessoas morreram", diz Anne Applebaum, jornalista americana autora de Gulag - A History ("Gulag - Uma História", inédito no Brasil), vencedor do prestigiado prêmio Pulitzer de jornalismo, em 2003.
As primeiras levas de prisioneiros começaram a chegar durante a guerra civil, de 1918 a 1921, quando monarquistas e republicanos apoiados pelas potências estrangeiras tentaram derrubar o governo bolchevique. Mas, desde aquela época, nem só contra-revolucionários acabavam hóspedes do Gulag. A policia secreta (cuja sigla mudaria de GPU, para OGPU, NKVD e finalmente KGB) tratou de alimentar os campos com todo tipo de gente que pudesse ser minimamente resistente ás novas regras: anarquistas, sionistas e descontentes em geral eram considerados espiões. Com o tempo e a ascensão de Stálin ao poder, o conceito de inimigo foi ficando cada vez mais amplo. "Proprietários rurais que resistissem à coletivização de suas terras, por exemplo, acabavam presos. Entre 1930 e 1933, Stálin mandou 2 milhões deles para a Sibéria", afirma Applebaum. Nessa época, os Gulag se transformaram no motor do crescimento industrial da União Soviética. Em turnos de até 30 horas, os prisioneiros construíram estradas, aeroportos e campos de petróleo. Segundo a jornalista, ex-correspondente da revista The Economist na Europa Oriental, foi em 1937, quando a repressão stalinista chegou ao ápice, que os Gulag se tornaram campos de execução. "Somente a ordem número 00485 da NKVD, contra ·desviantes e grupos de espionagem·, resultou na prisão de 350 mil pessoas, dos quais 247 157 foram fuzilados - entre eles, 110 mil poloneses."
O entra-e-sai nos campos era constante, já que tudo mudava com o humor volátil de Stálin e suas alianças. O carrasco de hoje podia ser a vitima de amanhã. O próprio chefe da NKVD, Nikolai Yezhov, foi fuzilado num campo. As execuções eram feitas pelos próprios guardas. "Geralmente à noite, os prisioneiros eram levados para a floresta e mortos a tiros. Depois eram sepultados em valas coletivas", diz Applebaum. O dia-a-dia nos campos era insuportável. Muita gente morria de fome e frio, vítima das péssimas condições de higiene e saúde.
Os prisioneiros eram impedidos de revelar o próprio nome. Para evitar que soubessem o nome dos vizinhos das outras celas, eram chamados por uma letra do alfabeto. O guarda gritava G, por exemplo, e todos que tivessem sobrenomes começando com essa letra deveriam se levantar para interrogatório. A pressão psicológica era enorme e os suicídios, comuns. Em seu livro, Applebaum reproduz relatos de ex-prisioneiros que tentaram se matar cortando as veias dos pulsos com os dentes. "Stálin usou o Gulag para manter a vida e a mente das pessoas sob controle total", diz Natan Sharansky, ex-prisioneiro de um campo na Sibéria, acusado de colaborar com os americanos e atual ministro de Israel para Assuntos de Jerusalém e da Diáspora. "Em nome da igualdade, o regime pretendeu eliminar religiões, tradições, nacionalidades, tudo o que dava ao ser humano a sensação de independência", afirma.
Ao longo de sua história, a União Soviética criou pelo menos 476 grandes complexos prisionais e milhares de pequenos campos regionais. Não há consenso sobre o número total de presos e mortos. Applebaum afirma que houve 28,7 milhões de prisioneiros. Contar os mortos, no entanto, é mais complicado. Segundo Tatiana Vorozheikina, professora da Escola de Ciências Econômicas e Sociais de Moscou, a taxa de mortalidade nos campos girava em torno de 5%, chegando a 30% nos mais duros. "Muita gente sumiu sem deixar vestígio. Só escavações nos antigos campos poderiam chegar a um número mais próximo da verdade". Oficialmente, 2 749 163 morreram nos campos e no exílio. Os campos começaram a ser desmantelados após a morte de Stálin, em 1953, mas alguns resistiram até os anos 80. Só em 1987, Mikhail Gorbachev - neto de prisioneiros do Gulag - decidiu tirá-los do mapa.

Chechênia, 1946

Uma das maiores tragédias dos Gulag foi a prisão coletiua dos chechenos. Em 1942, os aemães tomaram Grosny, a capital da Chechênia, e instalaram um governo aliado. Terminada a guerra, em 1946, Stálin se vingou. "Em três dias, colocou 400 mil chechenos em trens de carqa e os deportou para a Ásia Central. Metade morreu no caminho”, diz Vorozheihina. “Quem sobreviveu aos campos só foi autorizado a voltarem em 1946. Menos de 50 mil conseguiram retornar para casa.”

Ópera Bufa

Um dos maiores músicosdo século 20, Shostakovichsobreviveu ao ditador
Dmitri Shostakovich tremeu ao atender ao telefone em seu apartamento, em Moscou, em 16 de março de 1949. Do outro lado da linha estava o próprio Josef Stálin. O medo tinha sua razão de ser: ninguém estava a salvo da fúria do ditador e artistas, escritores e jornalistas nunca tiveram paz sob seu regime. Shostakovich pensou que havia chegado sua vez. "Mas Stálin foi educado, elogiou-o e perguntou se a saúde andava bem", diz Solomon Volkov, autor de Shostakovich and Stalin ("Shostakovich e Stalin", inédito no Brasil). Nascido em 1906, em São Petersburgo, Shostakovich compunha desde os 16 anos. Depois da revolução, como se recusava a fazer propaganda para o partido, não conseguia trabalho. Em 1926, rendeu-se e compôs uma sinfonia para os dez anos do movimento, que rendeu-lhe popularidade e a admiração de Stálin. Por baixo do pano, contudo, continuou a criticar o regime. Em 1929, Mikhail Kvadri, amigo a quem dedicara a sinfonia, desapareceu. "O castigo era para Shostakovich, mas eram os amigos que morriam", afirma Volkov. Em 1936, Stálin foi ao Teatro Bolshoi assistir à ópera Lady Macbeth, de Shostakovich. "Confusão em vez de música", escreveu o ditador. Isso poderia significar uma sentença de morte, mas o músico nada sofreu. O cunhado e a sogra é que pagaram. Presos, foram acusados de terrorismo.

Por que Shostakovich foi poupado?

Volkou acredita que foi graças ao reconhecimento Internacional do músico. "Seu desaparecimento afetaria a imagem da União Soviética", diz. Mas Shostakovich fez sua parte para se manter acima da linha de abate. Quando a situação piorava para o seu lado, ele compunha trilhas sonoras para filmes soviéticos - que Stálin adorava - e com isso limpava um pouco sua barra. Shostakovich morreu aos 69 anos, deixando uma obra extensa e oriqinal, com destaque para as 15 sinfonias e seus geniais quartetos de cordas.

Saiba mais

Livros
Stálin – Triunfo e Tragédia, Dmitri Volkogonov, Nova Fronteira, 2004 - São 626 páginas recheadas de detalhes sobre a vida pública e privada do líder
Stalin – The Court of the Red Tsar, Simon Sebag Montefiore, Knopf, 2003 - O autor constrói a biografia de Stálin a partir das pessoas que o rodeavam
Gulag – A History, Anne Applebaum, Anchor Books, 2004 - A história, a estrutura, a vida e a morte nos campos de trabalho forçado da URSS
Shostakovich and Stalin, Solomon Volkov, Knopf, 2004 - Volkov resgata a relação extraordinária entre o músico e o ditador

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