sábado, 4 de agosto de 2012

Criando uma celebridade



Seria uma crueldade deixar tão devoto detrator falando sozinho, sem direito a uns minutos de atenção.

1. Um fenômeno de psicologia social

Um sr. Gustavo Moreira, que se diz historiador e que talvez possa até ser aceito como tal num sentido muito elástico e generoso do termo, tem dedicado à minha pessoa uma atenção que me desvanece. Imprimi alguns dos artigos que ele escreveu contra mim e somavam 70 páginas em formato A4, o que corresponde a umas 120 páginas de livro. And counting...

Por débil e obscura que seja a sua personalidade intelectual, seria uma crueldade deixar tão devoto detrator falando sozinho, sem direito a uns minutos de atenção daquele por quem ele perdeu tantas noites de sono.

Não desejo, nestas notas, ser cruel nem sarcástico. O sarcasmo deve ser reservado para aqueles alvos que ocupam altas posições na sociedade, cuja desproporção com seus méritos reais convenha denunciar por esse meio. No sr. Moreira essa desproporção não existe: ele ocupa na hierarquia dos prestígios humanos o espaço humilde e quase infinitesimal que lhe compete. Não é um figurão nem uma figura, é no máximo um figurante. Não tenho de onde derrubá-lo, pois não subiu. A minguada fama que ele tem fui eu mesmo que lhe dei, mencionando-o no meu programa de rádio e fornecendo ao seu blog uma sobrecarga de 1.300 visitantes, que muito o surpreendeu.

A modéstia da sua posição, é verdade, contrasta com o tom grand seigneur, cheio de menosprezo aristocrático, com que ele fala de mim e de outras pessoas, algumas até bem melhores que nós dois. Se me permitem usar de uma velha expressão francesa, não haver-se alçado jamais acima do merecido anonimato não o impede de, quando abre a boca, peidar muito acima do seu próprio cu.

Mas não posso alegar isso contra ele individualmente. Se é possível diagnosticar um vício coletivo de estilo por amostras em profusão colhidas na internet, o tom em que ele escreve é o da sua presente geração de estudantes brasileiros. Cada um deles, quando se vê diante de um teclado de computador, parece erguer-se às alturas de um deus do Olimpo a espalhar perdigotos de desprezo sobre os míseros habitantes deste baixo mundo. E o tom se mostra tanto mais imperial e triunfante quanto mais obscuro, desconhecido e carente de glórias autorais ou curriculares é o autor da mensagem, quase sempre aluno de alguma faculdade de bairro perfeitamente desconhecida no resto do planeta, mas que para ele representa o mundo dourado da “cultura superior”. A impressão que fica é que, oprimidos por um sentimento de insignificância perfeitamente justo e realista, tentam se aliviar dele, por uns instantes, construindo em torno de si um cenário de sonho feito inteiramente de palavras. A internet abriu milhares de canais de evasão para pessoas que, sem isso, talvez viessem a estourar os miolos.

Não falo delas à toa. O sr. Gustavo Moreira é indiscutivelmente um membro do grupo. Há tempos ele participa ativamente de uma comunidade orkutiana multitudinária que de início se chamava “Nós odiamos o Olavo de Carvalho”. Como a coisa não pegasse bem, o nome mudou depois para “Olavo de Carvalho nos odeia”, num lance de projeção inversa baseado na premissa indiscutivelmente insana de que é mais provável um sujeito odiar cinco mil indivíduos que ele não tem a menor idéia de quem sejam, do que cinco mil indivíduos odiarem uma figura pública que não lhes sai do pensamento dia e noite.

Há pelo menos oito anos os membros dessa comunidade, entre os quais o sr. Moreira, ali depositam com uma freqüência e tenacidade admiráveis as inúmeras queixas e ranhetices que têm contra mim, sempre assegurando, reiterando e jurando que não prestam à minha insignificante pessoa a mais mínima atenção. O total de suas contribuições ao julgamento e condenação dessa criatura irrisória sobe a várias centenas de milhares de páginas, mais, talvez, do que já se escreveu sobre qualquer outro autor brasileiro.

Uma de suas ocupações mais constantes é vasculhar as páginas dos meus Comentários à Dialética Erística de Schopenhauer[1] – a única fonte sobre o assunto existente em português do Brasil --, e compará-las com meus artigos de jornal e comentários radiofônicos para ver se me apanham com a boca na botija, em pleno delito de apelar a alguns dos estratagemas de argumentação erística ali catalogados pelo pensador alemão.

A alegria feroz, o prazer orgástico com que anunciam uns aos outros:  “Olhem, ele caiu no estratagema 22!”, “Ele apelou ao argumentum ad hominem!”, “O desgraçado está usando da falácia ad populum!”, contrasta da maneira mais deprimente com o fato de que, transcorrido todo esse tempo, ainda não entenderam o conceito mais básico do livro: não sabem o que é um argumento erístico.

Tanto não o sabem, que imaginam poder aplicar essa classificação a qualquer afirmativa minha que lhes pareça desagradável ou chocante.

Ora, nenhuma afirmação, absolutamente nenhuma, certa ou errada, pode ser por si um argumento erístico. Só passa a sê-lo quando proferida como resposta no curso de um debate, portanto face a um oponente individual definido. Sem a circunstância formal de uma confrontação de razões e provas entre dois debatedores, os conceitos descritivos da erística simplesmente não se aplicam. Já tive algumas confrontações desse tipo, por exemplo com o prof. Alexandre Duguin, com o dr. Emir Sader, com o prof. Alaor Café na Faculdade de Direito da USP, com o ilustre historiador comunista Jacob Gorender na PUC de São Paulo ou, na Bienal do Livro de Porto Alegre de 1998, com o sr. João Pedro Stedile. Se procurassem argumentos erísticos aí, poderiam encontrá-los ou não, mas não estariam cometendo o erro grosseiro de tentar descobri-los em artigos de jornal onde não discuto com ninguém em particular, apenas espalho idéias entre o público geral sem o menor intuito de prová-las, quanto mais de validá-las até seus últimos detalhes no confronto com argumentos opostos. Isto deveria ser óbvio à primeira vista, mas os neurônios somados dos cinco mil membros daquela comunidade parecem não ter bastado, ao fim de oito anos de insistência, para lhes mostrar que onde não há um continuado esforço de prova em face de argumentos adversos, vindos de um oponente preciso, não pode, por definição, haver nem confrontação dialética legítima nem, é claro, pseudodialética erística nenhuma.

Qualquer afirmação pode, decerto, ser contestada com fatos ou razões. Mas classificá-la na erística, sem a condição formal de um debate um-a-um, é tão impróprio quanto tentar arrancar um dente de elefante com pinça de relojoeiro. É caçar ursos polares no deserto africano, tubarões no alto do Himalaia. Quanto mais precisão técnica, quanto mais atenção minuciosa você coloque nesse empenho, tanto mais desastradamente ridículo será o deslocamento, a defasagem, o abismo de inadequação entre o objetivo e os meios.[2]

O deslocamento entre o conteúdo de uma comunicação verbal e a situação de discurso em que ela é proferida pode revelar um lapso acidental, como por exemplo quando você não entende de imediato o tópico de uma discussão e dá um palpite totalmente extemporâneo. Mas pode revelar também, quando renitente e continuado, um defeito estrutural de percepção, uma falta de senso da realidade. Isso pode ir desde o auto-engano histérico até a completa falsificação psicótica do quadro das aparências: o indivíduo vive num cenário de ficção, desempenhando papéis que não correspondem à sua situação existencial verdadeira.

Se quiséssemos buscar um exemplo de como esse quadro mórbido pode se espalhar epidemicamente por todo um grupo social e ali permanecer ativo por longos períodos, dificilmente encontraríamos um caso mais característico que o daquela comunidade do Orkut. Não, não digo isso para ofender; apresento um diagnóstico estritamente objetivo.

De um lado, embora eu raramente responda ao que ali se publica, é patente o esforço daqueles orkutianos para formar e até organizar um repertório de objeções a Olavo de Carvalho. Como essas objeções se voltam contra um oponente único e definido e são trabalhadas internamente na comunidade até estabilizar-se em torno de certos pontos mais constantes, está claro que a situação real é a de um debate unilateral, onde um lado propõe objeções e o outro simplesmente não as contesta.

Desse esforço de debate faz parte essencial e indispensável a já referida busca de falácias erísticas, onde os combatentes anti-olavianos exibem uns aos outros as armas mais decisivas que encontraram, as quais, supõe-se, dariam cabo do adversário se este ousasse lhes fazer frente.

Ora, supondo-se que cada um dos participantes da empreitada houvesse apresentado, ao longo dos anos, apenas dez objeções possíveis a Olavo de Carvalho (na verdade apresentaram muitas mais), elas somariam, a esta altura, cinqüenta mil. Caso eu fosse conciso o bastante para responder a cada uma delas em apenas dez linhas, teria de escrever, para rebater essa multidão de contestadores, quinhentas mil linhas. Como uma página de livro tem em média 32 linhas, isso corresponderia a 15.625 páginas, ou seja, 52 volumes de 300 páginas cada um.

Essa é a real situação de discurso, expressa numericamente. Eristicamente, ela corresponde em toda linha ao Estratagema 7 de Schopenhauer, que consiste em crivar o adversário de mais perguntas ou objeções do que ele poderia materialmente responder.

A atenção obsessiva que os membros da comunidade colocam em ciscar falácias erísticas em frases minhas termina por torná-los cegos para o fato de que a própria comunidade é, de alto a baixo, uma falácia erística estrutural, um esforço de cinco mil pessoas para produzir objeções em número maior do que qualquer oponente poderia jamais responder, ao menos se não consentisse em fazer disso o objetivo da sua existência, renunciando a tudo o mais.

Não me interessa muito julgar a coisa do ponto de vista moral, onde, com toda a evidência, nenhum discutidor honesto ou razoável consentiria jamais em engrossar as forças da coletividade num debate de cinco mil contra um.

É do ponto de vista psicológico que o fenômeno me chama a atenção.

Caracteristicamente, a profusão de objeções que os membros da comunidade produzem se apóia na total e permanente inconsciência da situação de discurso, não sendo nem mesmo concebível sem isso.

Na mais branda das hipóteses, a atividade febril e quase maníaca a que essas pessoas se entregam baseia-se na falsificação histérica da situação real em que essa atividade se desenvolve.

O fenômeno, por estranho que pareça à primeira vista, é bem compreensível dentro do quadro político-social brasileiro da atualidade. Do ponto de vista ideológico, os membros daquela comunidade orkutiana têm clara afinidade uns com os outros: são militantes, simpatizantes, companheiros de viagem ou idiotas úteis da esquerda dominante. Essa esquerda, por sua vez, é notoriamente liderada por personalidades psicopáticas, moralmente insensíveis e coriáceas, cinicamente mendazes e manipuladoras, como os srs. Luís Inácio Lula da Silva, José Dirceu de Oliveira e Silva, Dilma Rousseff,  Marco Aurélio Garcia e tutti quanti. Em seu tratado Political Ponerology, baseado em décadas de estudo psiquiátrico das lideranças políticas na Polônia comunista, o dr. Andrew Lobaczewski descreve um quadro de patologia social que veio a se tornar dos mais constantes e repetitivos na política do início do século XX até agora: quando um grupo de psicopatas consegue ascender socialmente ao ponto de dominar um partido, um movimento ou um país inteiro, um quadro característico de histeria se espalha entre seus colaboradores, seguidores, admiradores e até entre o público em geral. O que define a falsificação histérica da realidade é que o sujeito não sente como real aquilo que vive, mas aquilo que imagina. E quando aquilo que imagina é diariamente reforçado pelo sentimento de solidariedade grupal com aqueles que sentem do mesmo modo, o hiato entre a experiência vivida e o falso senso de realidade pode produzir muitos e muitos fenômenos como a comunidade “Olavo de Carvalho nos odeia”.

As mais extremas negações de fatos patentes tornam-se aí banalidades rotineiras, compartilhadas por extensos grupos sociais até mesmo como sinais de normalidade e equilíbrio.

Não se deve confundir esses fenômenos com aquele que descrevi como “paralaxe cognitiva”. Este termo só se aplica a vastas e bem estruturadas construções teoréticas, não a meras opiniões vulgares de cunho mendaz ou fantástico fundadas na falsificação histérica da realidade. A falsificação histérica está sempre, é claro, na origem da paralaxe cognitiva, mas esta se distingue dela por dar-lhe uma legitimação intelectual sistemática e abrangente compatível com as mais altas exigências da especulação filosófica reinante. A falsificação histérica é um fenômeno de psicologia, individual ou social. A paralaxe cognitiva pertence à história das idéias. As vítimas de paralaxe são homens de gênio. As de histeria, multidões de joões-ninguéns.

O sr. Gustavo Moreira, que ninguém conhecia e aqui está sendo catapultado à condição de celebridade fugaz por força da sintomatologia que ele ilustra tão bem quanto qualquer outro membro da “Olavo de Carvalho nos odeia”, passará a ser examinado mais pormenorizadamente a partir do próximo capítulo desta série, mas os leitores mais atentos desta “Introdução” devem ter percebido que aqui ele não escapou do meu foco de exame por um só minuto.

Não venham, por favor, reclamar que estou dando importância demais a um tipo insignificante. Não seleciono meus assuntos pela importância dos personagens, mas dos temas. Só num país viciado em falar de pessoas e não de fatos e coisas pode essa atitude suscitar estranheza. Alguns dos livros mais importantes da humanidade, como O Homem do Subsolo, de Dostoiévski, ou The Secret Agent, de Joseph Conrad – isto para não mencionar La Rebelión de las Masas de José Ortega y Gasset, ou The Lonely Crowd, de David Riesman, foram justamente escritos a propósito de pessoas que, por sua falta de importância, eram representativas da sua sociedade e do seu tempo.

O sr. Moreira é uma espécie de resumo da comunidade “Olavo de Carvalho nos Odeia”, a qual por sua vez é um condensado da mentalidade do estudante universitário brasileiro hoje em dia, aquela classe da qual 38 por cento não sabem ler nem escrever e que, por isso mesmo, continua a acreditar no chavão dos anos 60 que fazia dela “a parcela mais esclarecida da nação”.

[Continua] 


Notas:

[1]  Arthur Schopenhauer, Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão – em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Introdução, Notas e Comentários de Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.

[2] Por extensão analógica, mas com cuidado, pode-se também aplicar os conceitos de erística a opiniões partidárias padronizadas, voltadas contra um adversário ideal também padronizado e automaticamente reconhecível (por exemplo, católicos e protestantes discutindo a doutrina da sola scriptura como fazem há séculos). Mas nunca a opiniões pessoais soltas em artigos de jornal, sem um alvo polêmico preciso. É essencial da confrontação dialética o esforço de provar, de demonstrar, que na discussão honesta se empreende por meios idôneos, na erística por meios fraudulentos. Esse esforço está, por definição, ausente de artigos breves de jornal, onde mal se consegue espremer uma opinião condensada em trinta linhas, no máximo indicando por alto umas linhas de prova possíveis, sem a menor ilusão de estar provando o que quer que seja. Artigos de opinião são, na mais generosa das hipóteses, pedaços de ensaios, espécimes parciais e abreviados do gênero ensaístico, gênero que, num estudo clássico, Pedro Laín Entralgo definia precisamente como “a teoria... menos a prova explícita”.



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