sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Análise: Execução de tio foi demais até para os padrões norte-coreanos





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AIDA FOSTER-CARTER
DO "GUARDIAN"
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GuardianDepois de visitar Pyongyang, Christopher Hitchens escreveu que embora o termo "orwelliano" seja um clichê, nenhuma outra palavra serviria para descrever a Coreia do Norte.
Demolindo as esperanças de que suas juventude e educação na Suíça pudessem resultar em mudança, Kim Jong-un, o quase monarca que representa a terceira geração de sua família no comando de um regime ainda hipoteticamente comunista, acaba de nos lembrar que "1984" continua a ser o manual do jogo da Coreia do Norte, com o cruel expurgo público de Jang Song-thaek, marido de sua tia e antigo protetor.
Como acontece em qualquer tirania, expurgos são coisa rotineira. Mas em geral são conduzidos com mais sutileza. Em julho de 2012, Ri Yong-ho, o vice-marechal que coordenou a sucessão do jovem Kim junto ao exército da Coreia do Norte, foi subitamente dispensado de todos os seus postos devido a uma "doença".

Imagens adulteradas por ditaduras

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Ministry of Unification/AFP
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Tio do ditador Kim Jong-un foi expulso do regime e executado a mando do sobrinho
Em 2010, outro importante líder militar, Kim Il-chol, passou por reforma compulsória semelhante, devido à sua "avançada idade de 80 anos". (O chefe de Estado figurativo da Coreia do Norte, Kim Yong-nam, tem 85 anos; Choe Yong-rim, o antigo primeiro-ministro, tem 83.)
De modo mais dramático, também em 2010, Ri Je-gang, um importante líder do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, que teoricamente governa o país, havia acabado de passar por uma noitada de arte do exército norte-coreano em companhia do então líder Kim Jong-il - os pontos altos do espetáculo incluíam "agitação por meio de reminiscências: 'Camaradas, apanhem esse revólver, por favor'" - quando seu carro sofreu uma colisão nas desertas ruas noturnas de Pyongyang, causando sua morte. Ri e Jang eram ambos proponentes rivais de Kim Jong-un para a sucessão, e por isso há quem considere que sua morte pode não ter sido acidente.
O mais frequente é que as pessoas simplesmente desapareçam. Como ministro das Finanças (2000-2005), Mun Il-bong apresentou cinco orçamentos (mas sem números demais, veja bem). A última informação sobre ele é a de que estaria visitando a Mongólia em outubro de 2005; depois disso, não houve novas menções a Mun.
Para outro conhecido especialista em finanças, Pak Nam-gi, os registros subitamente cessam em janeiro de 2010. Os boatos em Seul dão conta de que Pak foi fuzilado em um estádio de Pyongyang dois meses mais tarde, servindo como bode expiatório para a desastrosa substituição da moeda norte-coreana implementada no final de 2009.
Mesmo Jang - a despeito de suas décadas como parte do círculo mais poderosos de dirigentes do país, desde que se casou com Kim Kyong-hui, a irmã de Kim Jong-il, em 1972 - desapareceu na metade de 2003, ressurgindo no começo de 2006 e ganhando importância ainda maior quando seu sobrinho se tornou o novo líder do país.
Então como agora, a despeito dos laços de família, o medo era de que Jang estivesse criando uma base pessoal de poder. Mas enquanto Kim Jong-il precisava do cunhado, seu impetuoso filho não só considerou o tio como descartável como optou por fazer dele um exemplo.
A remoção de Jang foi um acontecimento extremo mesmo sob os padrões da Coreia do Norte. A última ocasião em que um líder importante havia sido mostrado na TV quando de sua detenção em uma reunião importante do partido, depois de ser acusado publicamente diante dos colegas, havia acontecido nos anos 70.
A longa e absurda lista de acusações não deixa coisa alguma de fora: de "ações facciosas contra o partido" e obstrução da economia a "sonhar sonhos diferentes", sem mencionar "uma vida dissoluta e depravada, relações impróprias com diversas mulheres" e até mesmo uso de drogas.
Jang talvez já tenha sido executado. Não se sabe o destino de sua mulher. A reformulação orwelliana da História também já começou. No sábado, Jang foi apagado ou teve sua imagem encoberta em 17 tomadas de uma reportagem de TV gravada em outubro, que o havia mostrado ao lado de Kim Jong-un.
Com a iminência do segundo aniversário do funeral de Kim Jong-il, será que também serão apagadas as fotos e filmes que o mostram caminhando ao lado do caixão, logo atrás de Kim Jong-un?
Tudo isso envolve altos riscos. Kim espera coibir quem quer que possa pensar em se opor a ele. Mas é uma jogada perigosa. Ninguém sabe que outras peças podem cair, quando removida uma peça central.
E ninguém acredita na encenação. Todos os norte-coreanos sabem quem é, ou era, Jang. A ideia de uma maçã podre bem no centro do regime dificilmente pareceria convincente - e pode sair pela culatra.
A República Democrática Popular da Coreia (título traído em cada uma de suas palavras) antigamente era parecida com outra das grandes distopias literárias: O "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley.
Seu povo parecia realmente acreditar no regime: pessoas felizes, reluzentes. Elas ainda podem fingir que o são, mas não se deixam enganar, como nós não devemos nos deixar. As 13h estão chegando, e continuamos à espera do Winston Smith de Pyongyang.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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