terça-feira, 8 de outubro de 2013

A Constituinte de 1988: entre as Liberdades e a Frente Única


Folha de São Paulo, 05/10/2013
Nos 25 anos da Constituição que Ulysses Guimarães classificou de “cidadã”, alinho-me com a tese de que uma das grandes virtudes da Carta é sua vocação garantidora de direitos. Foi, nesse caso, o bom uso que se fez de circunstâncias que não eram da nossa escolha. Explico-me: finda a ditadura militar, a nova Lei Maior procurou expressar o seu repúdio ao autoritarismo, precavendo-se de tentações golpistas e da agressão a direitos individuais. Mas também é preciso dizer que fizemos uma Carta excessivamente marcada por contingências, muitas vezes com o olhar posto no retrovisor. Curiosamente, seus defeitos não foram obra nem da esquerda nem da direita, mas do atraso. No Brasil, infelizmente, os direitistas costumam deixar de lado o conservadorismo virtuoso, e os esquerdistas, o igualitarismo generoso.
Poucos parecem divergir, a esta altura, da constatação de que o principal mérito da Constituição de 1988 é a consagração das liberdades democráticas – de opinião, manifestação e organização – e das garantias individuais: a criminalização inequívoca do racismo, a abolição do banimento e da pena de morte, o livre exercício dos cultos religiosos, o repúdio à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes dos aos cidadãos etc. Isso tudo ficou condensado no artigo 5º, o mais extenso da Carta, com 78 incisos e quatro parágrafos.
À parte as liberdades públicas e individuais, destaco, em planos distintos, como os maiores avanços da Carta de 1988, a concepção do SUS; a criação de um fundo (posteriormente chamado FAT) que reuniu as contribuições do PIS/Pasep para tornar viável o seguro-desemprego e, ao mesmo tempo, financiar investimentos; o dispositivo que definiu o salário mínimo como o piso dos benefícios previdenciários de prestação continuada; os capítulos que lidam com finanças públicas e controle externo ao Executivo e ao Legislativo – os Tribunais de Contas, por exemplo, foram extremamente fortalecidos nas suas atribuições; novos marcos para a política ambiental; o fortalecimento do Ministério Público; e a instituição do segundo turno na eleição para presidente, governadores e prefeitos em cidades com mais de 200 mil eleitores.
Mas há também alguns defeitos severos, que apontei e combati quando deputado constituinte – muitas das críticas foram expressas em artigos semanais nesta Folha: a prolixidade; as concessões de natureza corporativa; a prodigalidade fiscal; a falta de um regime geral de previdência mais homogêneo e adequado a longo prazo; o atrelamento dos sindicatos ao Estado; e a falta de inovação em matéria de sistema político e eleitoral. Deixo de mencionar aqui algumas aberrações aprovadas a respeito da ordem econômico-financeira, removidas nos quinze anos seguintes por intermédio de emendas constitucionais. Diga-se que tomei a iniciativa, como senador, de escoimar da Carta os absurdos na área financeira; contei com o apoio, faça-se justiça aos fatos, do então líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra.
A prolixidade não precisa ser provada; é autoevidente: 250 artigos e 70 disposições transitórias, com numerosos parágrafos e incisos, muitos deles típicos de leis ordinárias, decretos, portarias ou simples declarações de intenção em discursos parlamentares. Um exemplo pitoresco? A constitucionalização da existência da Justiça Desportiva e a garantia de “a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional”, o que, por óbvio, deixou de fora o futebol, o vôlei e o basquete…
Ao contrário do que se pensa, os interesses corporativos principais cravados na Constituição não foram os do setor privado, mas os da área da administração pública, de que é exemplo escancarado a estabilidade para os servidores não concursados de órgãos públicos que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de promulgação da Carta. Abriu-se caminho ainda para toda sorte de isonomias salariais, permanente e poderoso mecanismo gerador de despesas.
Esse aspecto corporativista da Constituição representou um fator decisivo na chamada prodigalidade fiscal. Outro foi a forte redistribuição federativa de receitas tributárias, sem que houvesse, paralelamente, nenhuma descentralização de encargos – feroz e eficazmente combatida pelas corporações de funcionários e de clientes dos setores envolvidos.
Se a força e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais deveram-se à ruptura com um regime de força – tratava-se de esconjurar o passado –, os defeitos da Carta de 1988 estão relacionados a contingências políticas e às falsas expectativas que gerou. Afinal, a Assembleia Nacional Constituinte vinha sendo uma bandeira da oposição ao regime militar desde a segunda metade da década de 1970. Não era vista como o umbral apenas da liberdade,  mas também da prosperidade e da justiça social.
Havia uma expectativa de elevação imediata do bem-estar social, o que fora proporcionado, note-se, pelo Plano Cruzado, na sua fase bem-sucedida em 1986, angariando muitos votos ao PMDB nas eleições daquele ano. Ocorre que a agonia do plano coincidiu com o início dos trabalhos da Constituinte, no começo de 1987. A inflação de dois dígitos mensais, fator de profunda perturbação e instabilidade social, fez sombra na Assembleia até o fim. Parlamentares e partidos se moviam freneticamente para mostrar serviço aos eleitores e para responder a demandas da opinião pública, procurando mitigar insatisfações com a criação de preceitos constitucionais. Ou por outra: uma Carta Constitucional, que por definição é feita  para durar e estar acima de contingências, transformava-se em fator de ajuste de tensões sociais e conflitos distributivos corriqueiros.
O colapso da estabilidade econômica enfraqueceu rapidamente o governo Sarney e ampliou a distância entre o mandatário e o PMDB, partido ao qual se filiara exclusivamente para assumir a condição de vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves. O setor mais influente do partido deu início aos trabalhos para redigir a nova Carta, procurando diferenciar-se do governo. Ganhou força a ideia de uma Assembleia que editasse atos constitucionais que se sobrepusessem ao Executivo. Isso acabou não acontecendo, mas inaugurou um tipo de conflito que se manteria até o final do processo constituinte.
O confronto mais relevante teve como objeto a duração do mandato de Sarney, que fora eleito com Tancredo para governar por seis anos, mas aceitava cinco. O então líder da bancada do PMDB, Mário Covas, defendia quatro e emplacou esse número numa primeira versão da Constituição, vinda da Comissão de Sistematização, em meados de 1987, junto com a aprovação do parlamentarismo. O presidente Sarney propôs um acordo: apoiaria o parlamentarismo se lhe dessem cinco anos e o direito de indicar um primeiro-ministro com estabilidade inicial de dez meses, se a memória não me falha. O PMDB recusou a oferta. O governo não mediu esforços para garantir os cinco anos, recorreu a todas as armas da fisiologia, para dizer o mínimo, e saiu vitorioso. O trágico é que o parlamentarismo acabou sendo  derrotado junto.
A impopularidade e a insegurança do governo, determinadas pela inflação galopante e pelos conflitos com a Assembleia, retiraram do governo a capacidade de assumir um papel relevante na formação do Texto Constitucional. Na verdade, o Planalto se omitiu, especialmente em relação aos gastos – chegou a apoiar medidas nesse sentido. O chamado Centrão, um agrupamento de parlamentares mais ligados ao governo, só tinha compromisso com os cinco anos e o presidencialismo. No mais, dispôs de plena autonomia para defender suas propostas.
É preciso destacar ainda as condições difíceis em que atuou o PMDB, o maior partido do Congresso. Era já uma força extremamente heterogênea, cindida por interesses regionais. Chegou à Constituinte sem uma concepção sobre a Carta ou a forma de organizar o trabalho. Além disso, ficou politicamente dividido entre suas duas figuras principais, ambos aspirantes à Presidência nas eleições seguintes: Ulysses Guimarães e Mário Covas. O primeiro era o presidente da Assembleia; o segundo, líder do partido, eleito contra o então deputado Luis Henrique, candidato de Ulysses.
Alguns analistas se confundem ao procurar entender o Texto Constitucional a partir da dinâmica de conflitos entre “esquerda” e “direita”. A chamada direita, no Brasil, não se expressa pelo conservadorismo, mas pelo atraso. Nem remotamente é austera. O texto substitutivo do Centrão era mais gastador e prolixo, mais recheado de casuísmos, privilégios corporativos, vinculações e isonomias do que o já pródigo projeto que fora por ele derrubado, da Comissão de Sistematização, este sim comandado pela fatia do PMDB que se afastara do governo. Note-se que o mesmo Centrão manteve no seu projeto todas as garantias democráticas do relatório que conseguiu derrubar. Estas não foram objeto de nenhum confronto significativo no desenrolar de todo o processo. E, só por curiosidade, foi do Centrão, do deputado Gastone Righi, a criação do abono de férias para todos os assalariados… Mais ainda, quando foi votada nos turnos finais a emenda que fixava a taxa máxima de juros da economia em 12% reais na Constituição brasileira, eu e o deputado Cesar Mais encaminhamos o voto contrário, a defesa da emenda também foi feita pelo Centrão, por intermédio do mesmo deputado e de outro, do PFL de Minas Gerais.
O que se poderia chamar “esquerda”, na época, era dominada pela concepção do Estado varguista e pelas ideias das décadas de 50 e 60, alienadas das mudanças que já estavam acontecendo no mundo e que só começariam a tornar-se mais transparentes no Brasil depois da queda do Muro de Berlim. Para ela, eram exóticas as preocupações com inflação, quadro fiscal, travas ao investimento privado e paternalismo estatal, sem mencionar a confusão permanente e até contradição entre benefícios para corporações restritas e interesses sociais mais amplos.
Os dois lados exibiram seu antagonismo – o que politicamente convinha a ambos –, com farta cobertura da imprensa. O tema foi a reforma agrária, e o confronto se deu em torno da função social da propriedade e da possibilidade de desaproprias terras produtivas. Tudo acabou resolvido em dois artigos. Noves fora as diferentes formas de lidar com o MST e com a inconstitucional violência rural, nenhum governo posterior procurou mexer no texto desses artigos nem deixou de levar adiante o caríssimo processo da reforma agrária.
Não por acaso, os dois “lados” – esquerda e direita – , com a cumplicidade de sucessivos governos, foram e continuam sendo integrantes ativos do mais consolidado de todos os partidos brasileiros: a Fuce – Frente Única Contra o Erário e a favor das corporações de interesses especiais. Ninguém é mais falsamente de esquerda do que ela. Ninguém é mais falsamente de direita do que ela. Ninguém, a exemplo dela, é tão objetivamente contra os interesses do Brasil e dos brasileiros. Aliás, não é esse o partido mais consolidado e hegemônico do Congresso, 25 anos depois?

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