segunda-feira, 17 de junho de 2013

Do luxo à cadeia




COMO GABRIEL GUINLE, FILHO DO MAIOR PLAYBOY DO BRASIL, VIROU AGENTE PENITENCIÁRIO – E ACABOU INVESTIGADO POR TRÁFICO DE DROGAS

Enviar por e-mail
|
Comentários
Gabriel, o caçula de Jorginho Guinle, em frente ao Copacabana Palace (Foto: Tiago Petrik)

Não há mesa livre no bar do Copacabana Palace, no fim da tarde desta abafada sexta-feira de maio. Embaixo da pérgola da famosa piscina do Copa, 15 pessoas celebram um aniversário com quatro garrafas de champanhe, resfriadas em baldes de gelo. Na beira d’água, um grupo menor e mais modesto, três jovens de calça jeans e camisa social, bebe cerveja e come mais uma porção de bolinhos de bacalhau. Também festejam.

– Finalmente negócio fechado! Um ano inteiro de negociações para vender esse terreno. Ufa! Acabou! Foi uma tensão só – diz o mais novo entre os três, antes de levar o copo ao alto e propor um brinde. É Gabriel Guinle, 30 anos, filho caçula de Jorginho Guinle, o mais famoso playboy brasileiro, cuja família já foi dona de uma das maiores fortunas do país e que fora responsável por construir, entre vários pontos emblemáticos do Rio capital federal, o próprio Copacabana Palace. 

Gabriel comemorava ali com dois amigos a venda de uma parte do espólio familiar que lhe restara – “alguns terrenos, nada mais”. É o pouco que chegou a ele da herança recebida pelo pai, essa sim, grande o suficiente para preencher de luxo uma vida inteira. Jorginho Guinle (que tinha 67 anos quando Gabriel nasceu) gabava-se de nunca ter trabalhado. Afirmava ter “errado os cálculos”. “O segredo do bem viver é morrer sem um centavo no bolso. Mas errei o cálculo e o dinheiro acabou antes da hora”, dizia o playboy, que se orgulhava por ter levado para a cama beldades como Marilyn Monroe (“duas vezes”), Rita Hayworth (namorou-a por três meses) e Jayne Mansfield (“corpo escultural e ninfomaníaca”).
Jorginho Guinle e a socialite Tânia Caldas, uma de suas inúmeras conquistas (Foto: agência O Globo)

Excluído do cálculo financeiro, Gabriel provou pouco do glamour em que o pai se lambuzou. Até chegou a experimentá-lo: passou a infância numa mansão no Flamengo, com oito empregados, mordomo e cozinheiro francês, onde chegou a ficar hospedado o beatle George Harrison. Mas já era a fase crepuscular de uma vida de farras – Jorginho estimava ter torrado US$ 80 milhões, toda a herança que recebera do pai, Carlos Guinle (a origem da fortuna familiar foi a construção e operação do Porto de Santos, entre o fim do século 19 e meados do século 20). 

Três gerações depois, quase nada chegou a Gabriel. No fim dos anos 90, ele mudou-se
com o pai para um apartamento modesto em Copacabana, sem luxo, de favor (a dona do imóvel era a amiga Ruth Almeida Prado). Jorginho estimulava os filhos a gastar. Além de Gabriel – que hoje leva no braço esquerdo uma tatuagem com o nome do pai –, teve Jorge Eduardo, que já morreu, e Georgiana, todos com mulheres diferentes. Jorginho morreu em 2004, quando ainda vivia como caçula. Aos 21 anos, Gabriel teve de buscar seu próprio caminho. A vida começou a se complicar. 

Já não havia mais luxo para o filho do playboy. Se antes o pai oferecia alguma ajuda (Jorginho pagou-lhe o ensino fundamental e o segundo grau), agora nem com isso ele poderia contar. As mensalidades na faculdade de Direito, que cursava na Sociedade
Unificada de Ensino Superior e Cultura (Suesc), começaram a atrasar e o Guinle se viu forçado a pedir clemência ao reitor. Abateram-lhe a dívida em 50% e Gabriel sentiu a corda afrouxar – mas entendeu que precisaria encontrar trabalho. Quis ser policial federal. Depois talvez advogado criminalista. “Decidi trabalhar”, disse Gabriel, na única entrevista anterior que concedeu, em 2011.

No plano que traçou, ele se propôs a conhecer “o sistema penal como um todo”. Decidiu começar por baixo e mergulhou o mais fundo possível – prestou concurso para inspetor de segurança do sistema penitenciário do Rio. No início de 2008, foi aprovado. Na história de uma família de pioneiros e empreendedores, inaugurou novo ramo– foi o primeiro a trabalhar na cadeia. Sua trajetória ganhava tintas esperançosas, de homem que criou caminho próprio, sem se preocupar com o sobrenome que leva. Mas não foi o que aconteceu.

Em 2009, Gabriel começou a trabalhar no presídio de segurança máxima de Bangu 3, no Complexo Penitenciário de Gericinó (zona oeste do Rio), onde ficam traficantes, estupradores e presos especializados em extorsão pelo telefone – são frequentes as notícias de que ordens de ataques saem de dentro dessa unidade. Em dois anos e meio de trabalho no sistema penitenciário, o Guinle lidou com os bandidos mais perigosos dos presídios do Rio. Fazer a contagem dos presos e acompanhar banhos de sol eram parte
da rotina de “seu Guinle”, como era chamado lá dentro. Disse ter vivido “momentos de tensão”, como quando faltou luz na prisão e teve de manter a arma (usava escopeta com balas de borracha) apontada para um mesmo ponto por cinco horas. Também presenciou casos de overdose – entravam drogas mesmo na área de isolamento da cadeia, para onde presos são levados para punição por mau comportamento.

Ao longo do período como agente penitenciário do Estado, o inspetor Guinle trabalhava 24 horas e folgava 72. Disse já ter sofrido ameaças dentro do presídio, mas que gostava da profissão, da sensação de “ser trabalhador”. Caso estivesse vivo, diz Gabriel, seu
pai “teria orgulho” do caminho trilhado pelo filho. Jorginho “não tinha preconceitos”. Certamente iria apoiá-lo, até acharia interessante. 

– Ele gostava de mundos diferentes daqueles em que vivia. Era um cara aberto, supertranquilo – disse-me Gabriel, na beira da piscina do Copa, ainda sem tocar no assunto que atualmente mais o incomoda.

A suspeita de um crime determinou o fim dos dias de Gabriel Guinle como agente
penitenciário no Rio. “Seu Guinle” não era figura apreciada dentro dos presídios, especialmente pelos colegas inspetores. “Ele falava demais, queria parecer o que não era, dizia coisas que não condiziam com a realidade. Um dia, rodou”, disse um colega de Bangu 3, que não quis se identificar. Havia suspeitas de que Gabriel usava e fornecia drogas. “O que se ouvia era que vendia na zona sul e talvez para dentro dos presídios. E onde há fumaça há fogo”, disse o mesmo colega.

O resultado é que Gabriel entrou na mira do órgão de inteligência da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio (Seap). Alertados por “denúncias anônimas”, agentes da inteligência o flagraram comprando maconha na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana (20 gramas, por R$ 100), em 21 de dezembro de 2011. Ele foi levado ao 12º Distrito Policial e, duas horas depois, foi liberado. Gabriel define o episódio como “um engano” e nega ter fornecido drogas dentro ou fora do sistema prisional. Segundo a Seap, ele é investigado por uso e por tráfico de drogas. Dois meses depois, em fevereiro do ano passado, a secretaria abriu investigação para apurar o caso – processo que ainda corre, sob sigilo.

– O que aconteceu foi um equívoco. Encontrei com um amigo meu para ir para a praia, aí eles botaram como um tablete e o caramba. Não tinha nada de tablete. Era um cigarro
de maconha, o cara ia fumar na praia. Entendeu? Aí acabou que deu m... para os dois. Foi uma situação desagradável, entende? Bola pra frente e é isso aí – disse-me Gabriel. 

O filho do playboy continua lotado na Seap, em Bangu 3 (mais especificamente no Instituto Penal Benjamin de Moraes Filho, uma das 26 unidades do complexo), mas já não trabalha no presídio. Desde setembro de 2012, ele está de licença médica (psiquiátrica) da Secretaria. Dentro de 20 dias, comparecerá à Seap para renovar a licença – e isso ele conta como quem sabe que faz algo errado. Na tentativa de justificar a licença médica, diz que pretende deixar a barba crescer. E fazer cara de “desorientado”. Pergunto se ele está realmente mal.

– Não... Não tô. É puro teatro. Até eu ver o que eu resolvo da minha vida. Se eu peço para sair...
– E por que você não pede exoneração? – pergunto.

Um dos amigos que acompanha a conversa no bar do Copa interrompe:

– Pedir para quê?
– Não vou pedir, não – completa Gabriel. – Porra nenhuma (risos). Vai levando. Melhor é se encostar (mais risos). Mas deixa pra lá. Senão me complica.

Na entrevista, Gabriel contou ainda que trabalha em um comércio, mesmo estando lotado – e de licença para “tratamento de saúde” – no serviço público. Ele dá expediente como vendedor em um antiquário na Rua Siqueira Campos, em Copacabana. O regulamento do Estatuto do Funcionário Público do Rio proíbe funcionários licenciados de exercerem atividades remuneradas. Segundo a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag) do governo do Rio, responsável por fiscalizar esse tipo de falta, trabalhar durante licença médica configura “falta grave” e é passível de “suspensão e exoneração”.

A atitude revelada por Gabriel faz lembrar o único trabalho que o pai teve em vida, na Companhia Internacional de Seguros. Embora constasse da folha de pagamento da empresa ao longo de 30 anos, admitia que “na verdade, mal aparecia lá”. Como de praxe, transformou a aversão ao trabalho em outra de suas pérolas. “Nenhum playboy de hoje pode ser meu sucessor. Todos têm um grave defeito: eles trabalham”, dizia. No caso de Jorginho, no momento em que decidiu “trabalhar”, encostou-se numa companhia de seguros propriedade de sua família. No caso de Gabriel, o órgão em que está “encostado”, como ele mesmo disse, é o Estado. 
O playboy mais famoso do Brasil corteja a atriz Dorothy McGuire (Foto: acervo Editora Globo)

Na última noite de sua vida, Jorginho chamou o caçula para conduzi-lo ao local onde havia escolhido morrer – a suíte 153 do Copacabana Palace, com vista para a piscina. Gabriel recorda a última refeição do pai: estrogonofe de frango servido em baixelas de prata, milk-shake de baunilha com calda de caramelo, sorvete de framboesa. Ouviram John Coltrane. Antes de deitar-se, Jorginho bebeu chá inglês. Morreu às 4 horas da madrugada de 5 de março de 2004, por complicações de um aneurisma na aorta que sofrera na semana anterior. Dias antes de morrer, ele assinou um termo de responsabilidade para deixar o hospital. Queria passar seus últimos momentos “no céu”, como chamou o hotel que sua família construiu.

A fortuna de que tanto usufruiu Jorginho teve origem na concessão de 90 anos para construção e operação das Docas de Santos, vencida por Eduardo Palassin Guinle (1846-
1912), avô do playboy – isso na época emque o Brasil exportava 75% do café do mundo. Jorginho brincava que, “a cada cinco cafezinhos bebidos no mundo, três pingavam em meu bolso”. Quando morreu, Palassin deixou herança de US$ 2 bilhões em valores atuais – mais do que as fortunas dos paulistas Prados e Matarazzos. 

Entre os pontos emblemáticos construídos pelos Guinle no Rio, além do próprio Copacabana Palace (em 1923, quando o bairro era um areal com poucas casas), estão o Palácio Laranjeiras, hoje residência oficial do governador, o Estádio das Laranjeiras, maior da cidade na época, e a Granja Comary, casa de campo da família, hoje local de treinos da seleção brasileira. Sabedor da fama da família, Jorginho se esbaldava: “O importante não era a quantidade de dinheiro que você tinha, mas devia aparentar ter muito. Era importante ter classe, se apresentar como dono do Copacabana Palace, amigo do Rockefeller”, escreveu, no livro de memórias Um Século de Boa Vida.

A opção de Gabriel pelo sistema prisional preocupou a família. Quem recorda é o primo, José Eduardo Guinle, ex-presidente da Riotur, que trabalha no ramo hoteleiro. “É um
trabalho importante, tem valor, mas gera preocupação, claro. Tem risco nisso aí. Agente penitenciário, e no Rio, com os presos mais perigosos do país? Claro que preocupa”, diz o
empresário. “Respeito a opção dele. Sempre procurou trabalhar, sempre correu atrás, e assim continua.” 

A mais forte recordação do primo, ainda dos tempos na presidência da Riotur, é da obstinação do rapaz. Quando estudante de Direito, Gabriel bateu à porta de José Eduardo pedindo estágio na área jurídica. “Deixei que ele estagiasse. Foi de graça, claro, não podia empregar parente, mas abri as portas por causa da vontade que ele demonstrava e para ajudar. O pai dele já não estava bem, o Gabriel teve de encontrar um caminho próprio. Por que não ajudar dando a ele essa experiência?”
Gabriel com o pai Jorginho e a irmã Georgiana (Foto: acervo pessoal)

Recordando tempos em que trabalharam no mesmo prédio, José Eduardo traça retrato psicológico do primo. “Gabriel é tímido, retraído. Jorge foi notícia até no dia em que morreu, e depois. Ele pegou o fimda vida do pai, e por isso escolheu ser pé no chão. Acabou só ouvindo falar na fortuna, nas conquistas, e se retraiu. Diziam: ‘Pô, teu pai comeu todo mundo, você comeu também?’. Ou esse mantra: ‘Teu pai queimou o dinheiro todo e te deixou aí, ferrado’. Durante muito tempo escutou isso. Acabou se isolando. Não era algo agradável de se ouvir. Especialmente diante da pessoa extraordinária que foi Jorge, nem de longe o irresponsável que pintam”, diz José Eduardo.

O primo diz desconhecer o flagrante com drogas. “Com certeza foi algo pequeno. É um bom rapaz, que gosta de trabalhar. Quando a investigação terminar, verão que não foi nada.” Naquele fim de tarde de maio, questionei novamente Gabriel sobre o flagrante e a informação de que a Seap o investiga por tráfico. Os processos ainda estão em andamento. Gabriel voltou a negar.

– Nunca, nunca. Isso foi um problema pessoal, nada a ver. Imagina se eu ia fazer um negócio desses. Sempre separei o lado profissional do pessoal.
–Sente falta do trabalho no presídio? – pergunto.
–Não. Nenhuma. (Trabalhar lá) Dá um filme também.

Ao falar em filme, Gabriel se refere ao projeto para o qual hoje se dedica. Junto com a irmã, Georgiana, está produzindo um longa-metragem sobre a vida do pai. Querem lançar também um documentário e uma série. O objetivo é, além de apresentar sua face pitoresca, mostrar Jorginho como “embaixador informal” do Brasil. Muito mais do que perdulário, defendem, ele foi um divulgador da imagem do país, principalmente do Rio de Janeiro. Promoveu a vinda de dezenas de atores e atrizes de Hollywood, empresários, políticos. A ideia dos irmãos é, enfim, reabilitar sua imagem. A julgar por seus últimos passos, talvez o desafio de Gabriel, o filho do playboy famoso que decidiu criar um novo caminho, seja tentar reavaliar também sua própria trajetória. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário