quinta-feira, 24 de novembro de 2011

República: de volta para o futuro


Publicado no Estadão em 24/11/2011.
José Serra

A proclamação da República, comemorada na semana passada, foi a culminância de um processo de grandes mudanças no Brasil do século 19. Basta lembrar o fim do tráfico de escravos, as primeiras tentativas de utilização da mão-de-obra livre, a expansão da economia cafeeira, o crescimento da população urbana e as campanhas abolicionistas.
Na esfera política, o republicanismo rompeu o imobilismo institucional do Império. É preciso reconhecer que a formação do Estado monárquico teve um papel dinâmico do ponto de vista da formação do país. Permitiu a manutenção da integridade territorial, estruturou a máquina do Estado e lançou os fundamentos da organização nacional. Não foram tarefas fáceis. Algumas delas levaram até a guerras com os países platinos. O Império, no entanto, mostrou-se pouco virtuoso no que diz respeito ao desenvolvimento econômico: foi anti-industrializante, criou barreiras à formação de um sistema de média e pequena propriedades no campo e foi tímido na modernização da infraestrutura.
As bases do subdesenvolvimento brasileiro nos séculos 20 e 21 se encontram no 19, ao qual chegamos com uma economia que se equiparava à dos EUA. Entre 1800 e 1913, no entanto, o PIB por habitante do Brasil estagnou. A economia americana, cujo PIB era próximo ao brasileiro por volta de 1800, aumentou seis vezes no mesmo período. Nossa grande regressão ocorreu durante o Império. A partir do fim do século 19, começamos a crescer mais rapidamente. E, desde esse tempo até 1980, a economia brasileira foi a que mais se expandiu no mundo. Mesmo descontando o crescimento populacional, continuamos na linha de frente, só perdendo para o Japão. Bons tempos, ao menos no dinamismo econômico.
Do ponto de vista da economia, a estrutura monárquica não conseguiu dar conta nem mesmo dos desafios oriundos do impulso gerado, em grande parte, pela atividade cafeeira. Foram o republicanismo e uma nova geração política a encarar esses desafios. Desde os anos 1880 – o manifesto republicano é de dezembro de 1870–, o movimento foi crescendo, em parte ligado à causa abolicionista. Nas duas faculdades de Direito do país – Recife e São Paulo –, a tese republicana dominava corações e mentes dos estudantes. Na literatura e no jornalismo, a batalha era travada sempre tendo como principal referência a Terceira República francesa. A influência chegava até os símbolos republicanos: a figura da Mariana, a Marselhesa, a bandeira tricolor, o barrete frígio. E, grande coincidência, a República foi proclamada justamente no primeiro centenário da Revolução Francesa.
O novo regime, surgido em 1889, reorganizou profundamente a estrutura do Estado. O federalismo, mesmo de cima para baixo, deu outra cara ao país. A Constituição de 1891 foi um avanço. Separou a Igreja do Estado, eliminou o Poder Moderador, criou o Supremo Tribunal Federal, entre outras medidas. Melhorou em muito a gestão pública, apesar da forte presença do poder local, dos coronéis — um obstáculo à plena constituição da democracia entre nós. O Brasil foi, apesar dos percalços, o único país da América do Sul com eleições regulares presidenciais a cada quatro anos, entre 1894 a 1930. Se, como é sabido, ocorriam fraudes, a mera existência de um processo eleitoral permitia a discussão dos grandes problemas nacionais. E foi justamente uma delas – a de 1930 – que ocorreu uma ruptura do sistema que levou à formação do moderno Estado brasileiro.
Esses tempos ecoam na história presente do país. Dos oitenta anos pós-República Velha, foram quase trinta de autoritarismo. Parte dos problemas que temos hoje é reflexo da pérfida relação sociedade civil-Estado que herdamos. O fortalecimento crescente do aparelho estatal foi mantendo ou empurrando a sociedade civil para fora da arena política. O Estado ocupou sozinho a esfera pública. Quem nele está tudo pode. Contudo, quem está fora passou a ser tratado, primeiro, como alienígena; depois, como adversário e, dentro desta lógica perversa, como alguém a ser destruído – como foi o figurino do último decênio.
O regime republicano teve enorme dificuldade de conciliar crescimento econômico e a manutenção das liberdades fundamentais do cidadão. E isso acabou marcando a nossa história desde 1930. Só na segunda metade dos anos 1950 e, mais especificamente, nas últimas duas décadas, é que conseguimos compatibilizar economia e política com a estabilização advinda do Plano Real, a construção de uma rede de proteção social e a defesa permanente do Estado democrático de direito.
Mas o espírito da “res publica”, que começara a reativar-se nos anos noventa, foi desaparecendo. O sonho dos primeiros republicanos, de um governo do povo e para o povo, acabou sendo substituído, numa curiosa metamorfose, por um governo dos, e para os, setores organizados e simpáticos aos poderosos do momento.
Nos anos recentes, o patrimonialismo refez-se em duas vertentes: na formação de uma burguesia do capital estatal e na ocupação pura e simples da máquina do Estado. Ocupação voltada ao sistemático desvio de recursos públicos para partidos, pessoas e manipulação eleitoral. E, desde logo, de uma ineficiência wagneriana na organização e funcionamento do serviço público e, pior ainda, na formulação e execução de um projeto de desenvolvimento nacional.
Isso significa que algumas das características essenciais de um regime republicano foram se perdendo ao longo do tempo, em nome de um suposto pragmatismo que mal esconde arranjos para proteger interesses patrimonialistas e corporativistas que se estabelecem ao arrepio da maioria do povo brasileiro. Precisamos recuperar o espírito da República para que o Brasil possa avançar. Precisamos caminhar de volta para o futuro.

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