sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Nazismo, comunismo e o problema da liberdade





Bruno Garschagen
Ordem Livre


Há sempre histórias reais que servem à perfeição para debater e aplicar os princípios e valores liberais sem o conforto dos exemplos meramente teóricos. Nesses casos, a ação que se segue à discussão testará o liberalismo no que se refere às consequências intencionais e não-intencionais.


Eis a impressionante história contada no livro When the Nazis Came to Skokie, de Philippa Strum, ex-professora de ciência política no City University of New York–Brooklyn College e hoje atua como Senior Scholar do Woodrow Wilson International Center for Scholars: na Chicago do final dos anos de 1970, um grupo neonazista pretendeu realizar uma marcha na cidade enquanto judeus sobreviventes do Holocausto na Alemanha refugiados nos Estados Unidos defendiam o direito de viver no lugar sem serem intimidados, agredidos, perseguidos ou mortos.


A história ganhou nuances mais complexas quando representantes da cidade deSkokie foram ao tribunal com o objetivo de impedir a marcha para evitar que os moradores, e não só a comunidade judia, fossem de alguma forma importunados e violentados, em maior ou menor grau, pela ação dos neonazistas. Em defesa do respeito à Primeira Emenda da Constituição Americana, a organização American Civil Liberties Union, da qual a autora do livro faz parte desde 1979, assumiu o caso para defender o direito à liberdade de expressão dos neonazistas e, com isso, garantir na justiça a realização da marcha.


O caso é ainda mais interessante: o advogado da American Civil Liberties Union era David Goldberger, um judeu a quem coube a inglória incumbência de defender o grupo neonazista no tribunal contra os judeus daquela comunidade; o líder do Partido Nacional Socialista da América, Frank Colin, o responsável pela organização da marcha, era filho de um judeu sobrevivente do Holocausto; e o representante da comunidade de Skokie, Sol Godstein, era ele próprio um sobrevivente da Infâmia nazista.


Eis a pergunta: em nome do respeito à liberdade de expressão, você aceitaria a marcha de um grupo que, poucos anos antes, tentou eliminar você e o seu povo? Atualizando a pergunta: em nome dos princípios e valores liberais, aceitaria hoje a existência e o funcionamento de um Partido Nazista, mesmo que você ou seus familiares não tenham sofrido diretamente as ações do regime Nazi?


Se a resposta for afirmativa, a sua aceitação seria plena ou estaria condicionada a certos critérios objetivos, como, por exemplo, a limitação da atuação desse partido antes e depois da ascensão ao poder? Ou seja, você aceitaria sem problemas a atuação de um partido que, se bem-sucedido, como fora na década de 1920 na Alemanha, eliminaria a sua liberdade e destruiria todo o ambiente de liberdade que você defende e que permitiu com que os neonazistas operassem sem serem incomodados? Caso a aceitação fosse condicionada, tal restrição não violaria os princípios e valores liberais que você defende?


Se a sua resposta for positiva, condicionada ou não, gostaria de propor mais uma pergunta: por que não aceitar a existência e funcionamento de um Partido Nazista já que você aceita, mesmo que tacitamente, a existência do Partido Socialista e do Partido Comunista, que mataram muito mais gente do que o regime nazi e se mantiveram no poder por mais tempo? E você acha que a aceitação atual da existência do Partido Socialista e do Partido Comunista exige, necessariamente, aceitar a existência do Partido Nazi?


Se você está curioso para saber como terminou a história em Skokie, eu conto: a American Civil Liberties Union venceu o litígio na justiça e a marcha foi autorizada. Mas a vitória judicial teve um alto custo para o Partido Nazista, que perdeu 30 mil membros e não conseguiu realizar a manifestação pública. Em 1981, a história ganhou um filme na TV.


Como seria possível imaginar que, numa história como essa, a defesa do princípio da liberdade de expressão contribuiria para resolver um problema tão delicado?


Leitura recomendada


Holocaust Survivors’ Protest Still Echoes in Illinois Suburb, por Douglas Belkin.


Remembering the Nazis in Skokie, de Geoffrey R. Stone.


When the Enemy Comes to Your Front Lawn, por Joey Pizzolato.


Cronologia dos acontecimentos.


We Are Coming: Nazis, Skokie, and the First Amendment (Documentário).


Bruno Garschagen é Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Oxford e colaborador da revista Dicta&Contradicta.

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